Para que filosofia?
Convite à Filosofia
De Marilena Chaui
Ed. Ática, São Paulo, 2000.
De Marilena Chaui
Ed. Ática, São Paulo, 2000.
Introdução
Para que Filosofia?
Para que Filosofia?
As evidências do cotidiano
Em
nossa vida cotidiana, afirmamos, negamos, desejamos, aceitamos ou recusamos
coisas, pessoas, situações. Fazemos perguntas como "que horas são?",
ou "que dia é hoje?". Dizemos frases como "ele está
sonhando", ou "ela ficou maluca". Fazemos afirmações como
"onde há fumaça, há fogo", ou "não saia na chuva para não se
resfriar". Avaliamos coisas e pessoas, dizendo, por exemplo, "esta casa
é mais bonita do que a outra" e "Maria está mais jovem do que
Glorinha".
Numa
disputa, quando os ânimos estão exaltados, um dos contendores pode gritar ao
outro: "Mentiroso! Eu estava lá e não foi isso o que aconteceu", e
alguém, querendo acalmar a briga, pode dizer: "Vamos ser objetivos, cada
um diga o que viu e vamos nos entender".
Também
é comum ouvirmos os pais e amigos dizerem que somos muito subjetivos quando o
assunto é o namorado ou a namorada. Freqüentemente, quando aprovamos uma
pessoa, o que ela diz, como ela age, dizemos que essa pessoa "é
legal".
Vejamos
um pouco mais de perto o que dizemos em nosso cotidiano.
Quando
pergunto "que horas são?" ou "que dia é hoje?", minha
expectativa é a de que alguém, tendo um relógio ou um calendário, me dê a
resposta exata. Em que acredito quando faço a pergunta e aceito a resposta?
Acredito que o tempo existe, que ele passa, pode ser medido em horas e dias,
que o que já passou é diferente de agora e o que virá também há de ser
diferente deste momento, que o passado pode ser lembrado ou esquecido, e o
futuro, desejado ou temido. Assim, uma simples pergunta contém,
silenciosamente, várias crenças não questionadas por nós.
Quando
digo "ele está sonhando", referindo-me a alguém que diz ou pensa
alguma coisa que julgo impossível ou improvável, tenho igualmente muitas
crenças silenciosas: acredito que sonhar é diferente de estar acordado, que, no
sonho, o impossível e o improvável se apresentam como possível e provável, e
também que o sonho se relaciona com o irreal, enquanto a vigília se relaciona
com o que existe realmente.
Acredito,
portanto, que a realidade existe fora de mim, posso percebê-la e conhecê-la tal
como é, sei diferenciar realidade de ilusão.
A
frase "ela ficou maluca" contém essas mesmas crenças e mais uma: a de
que sabemos diferenciar razão de loucura e maluca é a pessoa que inventa uma
realidade existente só para ela. Assim, ao acreditar que sei distinguir razão
de loucura, acredito também que a razão se refere a uma realidade que é a mesma
para todos, ainda que não gostemos das mesmas coisas.
Quando
alguém diz "onde há fumaça, há fogo" ou "não saia na chuva para
não se resfriar", afirma silenciosamente muitas crenças: acredita que
existem relações de causa e efeito entre as coisas, que onde houver uma coisa
certamente houve uma causa para ela, ou que essa coisa é causa de alguma outra
(o fogo causa a fumaça como efeito, a chuva causa o resfriado como efeito).
Acreditamos, assim, que a realidade é feita de causalidades, que as coisas, os
fatos, as situações se encadeiam em relações causais que podemos conhecer e,
até mesmo, controlar para o uso de nossa vida.
Quando
avaliamos que uma casa é mais bonita do que a outra, ou que Maria está mais
jovem do que Glorinha, acreditamos que as coisas, as pessoas, as situações, os
fatos podem ser comparados e avaliados, julgados pela qualidade (bonito, feio,
bom, ruim) ou pela quantidade (mais, menos, maior, menor). Julgamos, assim, que
a qualidade e a quantidade existem, que podemos conhecê-las e usá-las em nossa
vida.
Se,
por exemplo, dissermos que "o sol é maior do que o vemos", também
estamos acreditando que nossa percepção alcança as coisas de modos diferentes,
ora tais como são em si mesmas, ora tais como nos aparecem, dependendo da
distância, de nossas condições de visibilidade ou da localização e do movimento
dos objetos.
Acreditamos,
portanto, que o espaço existe, possui qualidades (perto, longe, alto, baixo) e
quantidades, podendo ser medido (comprimento, largura, altura). No exemplo do
sol, também se nota que acreditamos que nossa visão pode ver as coisas
diferentemente do que elas são, mas nem por isso diremos que estamos sonhando
ou que ficamos malucos.
Na
briga, quando alguém chama o outro de mentiroso porque não estaria dizendo os
fatos exatamente como aconteceram, está presente a nossa crença de que há
diferença entre verdade e mentira. A primeira diz as coisas tais como são,
enquanto a segunda faz exatamente o contrário, distorcendo a realidade.
No
entanto, consideramos a mentira diferente do sonho, da loucura e do erro porque
o sonhador, o louco e o que erra se iludem involuntariamente, enquanto o
mentiroso decide voluntariamente deformar a realidade e os fatos.
Com
isso, acreditamos que o erro e a mentira são falsidades, mas diferentes porque
somente na mentira há a decisão de falsear.
Ao
diferenciarmos erro de mentira, considerando o primeiro uma ilusão ou um engano
involuntários e a segunda uma decisão voluntária, manifestamos silenciosamente
a crença de que somos seres dotados de vontade e que dela depende dizer a
verdade ou a mentira.
Ao
mesmo tempo, porém, nem sempre avaliamos a mentira como alguma coisa ruim: não
gostamos tanto de ler romances, ver novelas, assistir a filmes? E não são
mentira? É que também acreditamos que quando alguém nos avisa que está
mentindo, a mentira é aceitável, não seria uma mentira "no duro",
"pra valer".
Quando
distinguimos entre verdade e mentira e distinguimos mentiras inaceitáveis de
mentiras aceitáveis, não estamos apenas nos referindo ao conhecimento ou
desconhecimento da realidade, mas também ao caráter da pessoa, à sua moral.
Acreditamos, portanto, que as pessoas, porque possuem vontade, podem ser morais
ou imorais, pois cremos que a vontade é livre para o bem ou para o mal.
Na
briga, quando uma terceira pessoa pede às outras duas para que sejam
"objetivas" ou quando falamos dos namorados como sendo "muito
subjetivos", também estamos cheios de crenças silenciosas. Acreditamos que
quando alguém quer defender muito intensamente um ponto de vista, uma
preferência, uma opinião, até brigando por isso, ou quando sente um grande
afeto por outra pessoa, esse alguém "perde" a objetividade, ficando
"muito subjetivo".
Com
isso, acreditamos que a objetividade é uma atitude imparcial que alcança as
coisas tais como são verdadeiramente, enquanto a subjetividade é uma atitude
parcial, pessoal, ditada por sentimentos variados (amor, ódio, medo, desejo).
Assim, não só acreditamos que a objetividade e a subjetividade existem, como
ainda acreditamos que são diferentes e que a primeira não deforma a realidade,
enquanto a segunda, voluntária ou involuntariamente, a deforma.
Ao
dizermos que alguém "é legal" porque tem os mesmos gostos, as mesmas
idéias, respeita ou despreza as mesmas coisas que nós e tem atitudes, hábitos e
costumes muito parecidos com os nossos, estamos, silenciosamente, acreditando
que a vida com as outras pessoas - família, amigos, escola, trabalho,
sociedade, política - nos faz semelhantes ou diferentes em decorrência de
normas e valores morais, políticos, religiosos e artísticos, regras de conduta,
finalidades de vida.
Achando
óbvio que todos os seres humanos seguem regras e normas de conduta, possuem
valores morais, religiosos, políticos, artísticos, vivem na companhia de seus
semelhantes e procuram distanciar-se dos diferentes dos quais discordam e com
os quais entram em conflito, acreditamos que somos seres sociais, morais e
racionais, pois regras, normas, valores, finalidades só podem ser estabelecidos
por seres conscientes e dotados de raciocínio.
Como
se pode notar, nossa vida cotidiana é toda feita de crenças silenciosas, da
aceitação tácita de evidências que nunca questionamos porque nos parecem
naturais, óbvias. Cremos no espaço, no tempo, na realidade, na qualidade, na
quantidade, na verdade, na diferença entre realidade e sonho ou loucura, entre
verdade e mentira; cremos também na objetividade e na diferença entre ela e a
subjetividade, na existência da vontade, da liberdade, do bem e do mal, da
moral, da sociedade.
A atitude filosófica
Imaginemos,
agora, alguém que tomasse uma decisão muito estranha e começasse a fazer
perguntas inesperadas. Em vez de "que horas são?" ou "que dia é
hoje?", perguntasse: O que é o tempo? Em vez de dizer "está
sonhando" ou "ficou maluca", quisesse saber: O que é o sonho? A
loucura? A razão?
Se
essa pessoa fosse substituindo sucessivamente suas perguntas, suas afirmações
por outras: “Onde há fumaça, há fogo”, ou “não saia na chuva para não ficar
resfriado”, por: O que é causa? O que é efeito?; “seja objetivo”, ou
“eles são muito subjetivos”, por: O que é a objetividade? O que é a
subjetividade?; “Esta casa é mais bonita do que a outra”, por: O que é
“mais”? O que é “menos”? O que é o belo?
Em
vez de gritar “mentiroso!”, questionasse: O que é a verdade? O que é o falso? O
que é o erro? O que é a mentira? Quando existe verdade e por quê? Quando existe
ilusão e por quê?
Se,
em vez de falar na subjetividade dos namorados, inquirisse: O que é o amor?
O que é o desejo? O que são os sentimentos?
Se,
em lugar de discorrer tranqüilamente sobre “maior” e “menor” ou “claro” e
“escuro”, resolvesse investigar: O que é a quantidade? O que é a qualidade?
E
se, em vez de afirmar que gosta de alguém porque possui as mesmas idéias, os
mesmos gostos, as mesmas preferências e os mesmos valores, preferisse analisar:
O que é um valor? O que é um valor moral? O que é um valor artístico? O que
é a moral? O que é a vontade? O que é a liberdade?
Alguém
que tomasse essa decisão, estaria tomando distância da vida cotidiana e de si
mesmo, teria passado a indagar o que são as crenças e os sentimentos que
alimentam, silenciosamente, nossa existência.
Ao
tomar essa distância, estaria interrogando a si mesmo, desejando conhecer por
que cremos no que cremos, por que sentimos o que sentimos e o que são nossas
crenças e nossos sentimentos. Esse alguém estaria começando a adotar o que
chamamos de atitude filosófica.
Assim,
uma primeira resposta à pergunta “O que é Filosofia?” poderia ser: A decisão de
não aceitar como óbvias e evidentes as coisas, as idéias, os fatos, as situações,
os valores, os comportamentos de nossa existência cotidiana; jamais aceitá-los
sem antes havê-los investigado e compreendido.
Perguntaram,
certa vez, a um filósofo: “Para que Filosofia?”. E ele respondeu: “Para não
darmos nossa aceitação imediata às coisas, sem maiores considerações”.
A atitude crítica
A
primeira característica da atitude filosófica é negativa, isto é, um
dizer não ao senso comum, aos pré-conceitos, aos pré-juízos, aos fatos e às
idéias da experiência cotidiana, ao que “todo mundo diz e pensa”, ao
estabelecido.
A
segunda característica da atitude filosófica é positiva, isto é, uma
interrogação sobre o que são as coisas, as idéias, os fatos, as
situações, os comportamentos, os valores, nós mesmos. É também uma interrogação
sobre o porquê disso tudo e de nós, e uma interrogação sobre como tudo isso é
assim e não de outra maneira. O que é? Por que é? Como é? Essas são as
indagações fundamentais da atitude filosófica.
A
face negativa e a face positiva da atitude filosófica constituem o que chamamos
de atitude crítica e pensamento crítico.
A
Filosofia começa dizendo não às crenças e aos preconceitos do senso comum e,
portanto, começa dizendo que não sabemos o que imaginávamos saber; por isso, o
patrono da Filosofia, o grego Sócrates, afirmava que a primeira e fundamental
verdade filosófica é dizer: “Sei que nada sei”. Para o discípulo de Sócrates, o
filósofo grego Platão, a Filosofia começa com a admiração; já o discípulo de
Platão, o filósofo Aristóteles, acreditava que a Filosofia começa com o
espanto.
Admiração
e espanto significam: tomamos distância do nosso mundo costumeiro, através de
nosso pensamento, olhando-o como se nunca o tivéssemos visto antes, como se não
tivéssemos tido família, amigos, professores, livros e outros meios de comunicação
que nos tivessem dito o que o mundo é; como se estivéssemos acabando de nascer
para o mundo e para nós mesmos e precisássemos perguntar o que é, por que é e
como é o mundo, e precisássemos perguntar também o que somos, por que somos e
como somos.
Para que Filosofia?
Ora,
muitos fazem uma outra pergunta: afinal, para que Filosofia?
É
uma pergunta interessante. Não vemos nem ouvimos ninguém perguntar, por
exemplo, para que matemática ou física? Para que geografia ou geologia? Para
que história ou sociologia? Para que biologia ou psicologia? Para que
astronomia ou química? Para que pintura, literatura, música ou dança? Mas todo
mundo acha muito natural perguntar: Para que Filosofia?
Em
geral, essa pergunta costuma receber uma resposta irônica, conhecida dos
estudantes de Filosofia: “A Filosofia é uma ciência com a qual e sem a qual o
mundo permanece tal e qual”. Ou seja, a Filosofia não serve para nada. Por
isso, se costuma chamar de “filósofo” alguém sempre distraído, com a cabeça no
mundo da lua, pensando e dizendo coisas que ninguém entende e que são
perfeitamente inúteis.
Essa
pergunta, “Para que Filosofia?”, tem a sua razão de ser.
Em
nossa cultura e em nossa sociedade, costumamos considerar que alguma coisa só
tem o direito de existir se tiver alguma finalidade prática, muito visível e de
utilidade imediata.
Por
isso, ninguém pergunta para que as ciências, pois todo mundo imagina ver a
utilidade das ciências nos produtos da técnica, isto é, na aplicação científica
à realidade.
Todo
mundo também imagina ver a utilidade das artes, tanto por causa da compra e
venda das obras de arte, quanto porque nossa cultura vê os artistas como gênios
que merecem ser valorizados para o elogio da humanidade. Ninguém, todavia,
consegue ver para que serviria a Filosofia, donde dizer-se: não serve para
coisa alguma.
Parece,
porém, que o senso comum não enxerga algo que os cientistas sabem muito bem. As
ciências pretendem ser conhecimentos verdadeiros, obtidos graças a
procedimentos rigorosos de pensamento; pretendem agir sobre a realidade,
através de instrumentos e objetos técnicos; pretendem fazer progressos nos
conhecimentos, corrigindo-os e aumentando-os.
Ora,
todas essas pretensões das ciências pressupõem que elas acreditam na existência
da verdade, de procedimentos corretos para bem usar o pensamento, na tecnologia
como aplicação prática de teorias, na racionalidade dos conhecimentos, porque
podem ser corrigidos e aperfeiçoados.
Verdade,
pensamento, procedimentos especiais para conhecer fatos, relação entre teoria e
prática, correção e acúmulo de saberes: tudo isso não é ciência, são questões
filosóficas. O cientista parte delas como questões já respondidas, mas é a
Filosofia quem as formula e busca respostas para elas.
Assim,
o trabalho das ciências pressupõe, como condição, o trabalho da Filosofia,
mesmo que o cientista não seja filósofo. No entanto, como apenas os cientistas
e filósofos sabem disso, o senso comum continua afirmando que a Filosofia não
serve para nada.
Para
dar alguma utilidade à Filosofia, muitos consideram que, de fato, a Filosofia
não serviria para nada, se “servir” fosse entendido como a possibilidade de
fazer usos técnicos dos produtos filosóficos ou dar-lhes utilidade econômica,
obtendo lucros com eles; consideram também que a Filosofia nada teria a ver com
a ciência e a técnica.
Para
quem pensa dessa forma, o principal para a Filosofia não seriam os
conhecimentos (que ficam por conta da ciência), nem as aplicações de teorias
(que ficam por conta da tecnologia), mas o ensinamento moral ou ético. A Filosofia
seria a arte do bem viver. Estudando as paixões e os vícios humanos, a
liberdade e a vontade, analisando a capacidade de nossa razão para impor
limites aos nossos desejos e paixões, ensinando-nos a viver de modo honesto e
justo na companhia dos outros seres humanos, a Filosofia teria como finalidade
ensinar-nos a virtude, que é o princípio do bem-viver.
Essa
definição da Filosofia, porém, não nos ajuda muito. De fato, mesmo para ser uma
arte moral ou ética, ou uma arte do bem-viver, a Filosofia continua fazendo
suas perguntas desconcertantes e embaraçosas: O que é o homem? O que é a
vontade? O que é a paixão? O que é a razão? O que é o vício? O que é a virtude?
O que é a liberdade? Como nos tornamos livres, racionais e virtuosos? Por que a
liberdade e a virtude são valores para os seres humanos? O que é um valor? Por
que avaliamos os sentimentos e as ações humanas?
Assim,
mesmo se disséssemos que o objeto da Filosofia não é o conhecimento da
realidade, nem o conhecimento da nossa capacidade para conhecer, mesmo se
disséssemos que o objeto da Filosofia é apenas a vida moral ou ética, ainda
assim, o estilo filosófico e a atitude filosófica permaneceriam
os mesmos, pois as perguntas filosóficas - o que, por que e como - permanecem.
Atitude filosófica: indagar
Se,
portanto, deixarmos de lado, por enquanto, os objetos com os quais a Filosofia
se ocupa, veremos que a atitude filosófica possui algumas características que
são as mesmas, independentemente do conteúdo investigado. Essas características
são:
-
perguntar o que a coisa, ou o valor, ou a idéia, é. A Filosofia pergunta
qual é a realidade ou natureza e qual é a significação de alguma coisa, não
importa qual;
-
perguntar como a coisa, a idéia ou o valor, é. A Filosofia indaga qual é
a estrutura e quais são as relações que constituem uma coisa, uma idéia ou um
valor;
-
perguntar por que a coisa, a idéia ou o valor, existe e é como é. A
Filosofia pergunta pela origem ou pela causa de uma coisa, de uma idéia, de um
valor.
A
atitude filosófica inicia-se dirigindo essas indagações ao mundo que nos rodeia
e às relações que mantemos com ele. Pouco a pouco, porém, descobre que essas
questões se referem, afinal, à nossa capacidade de conhecer, à nossa capacidade
de pensar.
Por
isso, pouco a pouco, as perguntas da Filosofia se dirigem ao próprio
pensamento: o que é pensar, como é pensar, por que há o pensar? A Filosofia
torna-se, então, o pensamento interrogando-se a si mesmo. Por ser uma volta que
o pensamento realiza sobre si mesmo, a Filosofia se realiza como reflexão.
A reflexão filosófica
Reflexão
significa movimento de volta sobre si mesmo ou movimento de retorno a si mesmo.
A reflexão é o movimento pelo qual o pensamento volta-se para si mesmo,
interrogando a si mesmo.
A
reflexão filosófica é radical porque é um movimento de volta do
pensamento sobre si mesmo para conhecer-se a si mesmo, para indagar como é
possível o próprio pensamento.
Não
somos, porém, somente seres pensantes. Somos também seres que agem no mundo,
que se relacionam com os outros seres humanos, com os animais, as plantas, as
coisas, os fatos e acontecimentos, e exprimimos essas relações tanto por meio
da linguagem quanto por meio de gestos e ações.
A
reflexão filosófica também se volta para essas relações que mantemos com a
realidade circundante, para o que dizemos e para as ações que realizamos nessas
relações.
A
reflexão filosófica organiza-se em torno de três grandes conjuntos de perguntas
ou questões:
1.
Por que pensamos o que pensamos, dizemos o que dizemos e fazemos o que fazemos?
Isto é, quais os motivos, as razões e as causas para
pensarmos o que pensamos, dizermos o que dizemos, fazermos o que fazemos?
2. O
que queremos pensar quando pensamos, o que queremos dizer quando falamos, o que
queremos fazer quando agimos? Isto é, qual é o conteúdo ou o sentido
do que pensamos, dizemos ou fazemos?
3.
Para que pensamos o que pensamos, dizemos o que dizemos, fazemos o que fazemos?
Isto é, qual é a intenção ou a finalidade do que pensamos,
dizemos e fazemos?
Essas
três questões podem ser resumidas em: O que é pensar, falar e agir? E elas
pressupõem a seguinte pergunta: Nossas crenças cotidianas são ou não um saber
verdadeiro, um conhecimento?
Como
vimos, a atitude filosófica inicia-se indagando: O que é? Como é? Por que é?,
dirigindo-se ao mundo que nos rodeia e aos seres humanos que nele vivem e com
ele se relacionam. São perguntas sobre a essência, a significação
ou a estrutura e a origem de todas as coisas.
Já a
reflexão filosófica indaga: Por quê?, O quê?, Para quê?, dirigindo-se ao
pensamento, aos seres humanos no ato da reflexão. São perguntas sobre a capacidade
e a finalidade humanas para conhecer e agir.
Filosofia: um pensamento sistemático
Essas
indagações fundamentais não se realizam ao acaso, segundo preferências e
opiniões de cada um de nós. A Filosofia não é um “eu acho que” ou um “eu gosto
de”. Não é pesquisa de opinião à maneira dos meios de comunicação de massa. Não
é pesquisa de mercado para conhecer preferências dos consumidores e montar uma
propaganda.
As
indagações filosóficas se realizam de modo sistemático.
Que
significa isso?
Significa
que a Filosofia trabalha com enunciados precisos e rigorosos, busca
encadeamentos lógicos entre os enunciados, opera com conceitos ou idéias
obtidos por procedimentos de demonstração e prova, exige a fundamentação
racional do que é enunciado e pensado. Somente assim a reflexão filosófica pode
fazer com que nossa experiência cotidiana, nossas crenças e opiniões alcancem
uma visão crítica de si mesmas. Não se trata de dizer “eu acho que”, mas de
poder afirmar “eu penso que”.
O
conhecimento filosófico é um trabalho intelectual. É sistemático porque não se
contenta em obter respostas para as questões colocadas, mas exige que as
próprias questões sejam válidas e, em segundo lugar, que as respostas sejam verdadeiras,
estejam relacionadas entre si, esclareçam umas às outras, formem conjuntos
coerentes de idéias e significações, sejam provadas e demonstradas
racionalmente.
Quando
o senso comum diz “esta é minha filosofia” ou “isso é a filosofia de fulana ou
de fulano”, engana-se e não se engana.
Engana-se
porque imagina que para “ter uma filosofia” basta alguém possuir um conjunto de
idéias mais ou menos coerentes sobre todas as coisas e pessoas, bem como ter um
conjunto de princípios mais ou menos coerentes para julgar as coisas e as
pessoas. “Minha filosofia” ou a “filosofia de fulano” ficam no plano de um “eu
acho” coerente.
Mas
o senso comum não se engana ao usar essas expressões porque percebe, ainda que
muito confusamente, que há uma característica nas idéias e nos princípios que
nos leva a dizer que são uma filosofia: a coerência, as relações entre as
idéias e entre os princípios. Ou seja, o senso comum pressente que a Filosofia
opera sistematicamente, com coerência e lógica, que a Filosofia tem uma vocação
para formar um todo daquilo que aparece de modo fragmentado em nossa
experiência cotidiana.
Em busca de uma definição da Filosofia
Quando
começamos a estudar Filosofia, somos logo levados a buscar o que ela é. Nossa
primeira surpresa surge ao descobrirmos que não há apenas uma definição da
Filosofia, mas várias. A segunda surpresa vem ao percebermos que, além de
várias, as definições parecem contradizer-se. Eis porque muitos, cheios de
perplexidade, indagam: afinal, o que é a Filosofia que sequer consegue dizer o
que ela é?
Uma
primeira aproximação nos mostra pelo menos quatro definições gerais do que
seria a Filosofia:
1. Visão
de mundo de um povo, de uma civilização ou de uma cultura. Filosofia
corresponde, de modo vago e geral, ao conjunto de idéias, valores e práticas
pelos quais uma sociedade apreende e compreende o mundo e a si mesma, definindo
para si o tempo e o espaço, o sagrado e o profano, o bom e o mau, o justo e o
injusto, o belo e o feio, o verdadeiro e o falso, o possível e o impossível, o
contingente e o necessário.
Qual
o problema dessa definição? Ela é tão genérica e tão ampla que não permite, por
exemplo, distinguir a Filosofia e religião, Filosofia e arte, Filosofia e
ciência. Na verdade, essa definição identifica Filosofia e Cultura, pois esta é
uma visão de mundo coletiva que se exprime em idéias, valores e práticas de uma
sociedade.
A
definição, portanto, não consegue acercar-se da especificidade do trabalho
filosófico e por isso não podemos aceitá-la.
2. Sabedoria
de vida. Aqui, a Filosofia é identificada com a definição e a ação de
algumas pessoas que pensam sobre a vida moral, dedicando-se à contemplação do
mundo para aprender com ele a controlar e dirigir suas vidas de modo ético e
sábio.
A
Filosofia seria uma contemplação do mundo e dos homens para nos conduzir a uma
vida justa, sábia e feliz, ensinando-nos o domínio sobre nós mesmos, sobre
nossos impulsos, desejos e paixões. É nesse sentido que se fala, por exemplo,
numa filosofia do budismo.
Esta
definição, porém, nos diz, de modo vago, o que se espera da Filosofia (a
sabedoria interior), mas não o que é e o que faz a Filosofia e, por isso,
também não podemos aceitá-la.
3. Esforço
racional para conceber o Universo como uma totalidade ordenada e dotada de
sentido. Nesse caso, começa-se distinguindo entre Filosofia e religião e
até mesmo opondo uma à outra, pois ambas possuem o mesmo objeto (compreender o
Universo), mas a primeira o faz através do esforço racional, enquanto a
segunda, por confiança (fé) numa revelação divina.
Ou
seja, a Filosofia procura discutir até o fim o sentido e o fundamento da
realidade, enquanto a consciência religiosa se baseia num dado primeiro e
inquestionável, que é a revelação divina indemonstrável.
Pela
fé, a religião aceita princípios indemonstráveis e até mesmo aqueles que podem
ser considerados irracionais pelo pensamento, enquanto a Filosofia não admite
indemonstrabilidade e irracionalidade. Pelo contrário, a consciência filosófica
procura explicar e compreender o que parece ser irracional e inquestionável.
No
entanto, esta definição também é problemática, porque dá à Filosofia a tarefa
de oferecer uma explicação e uma compreensão totais sobre o Universo,
elaborando um sistema universal ou um sistema do mundo, mas sabemos, hoje, que
essa tarefa é impossível.
Há
pelo menos duas limitações principais a esta pretensão totalizadora: em
primeiro lugar, porque a explicação sobre a realidade também é oferecida pelas
ciências e pelas artes, cada uma das quais definindo um aspecto e um campo da
realidade para estudo (no caso das ciências) e para a expressão (no caso das
artes), já não sendo pensável uma única disciplina que pudesse abranger sozinha
a totalidade dos conhecimentos; em segundo lugar, porque a própria Filosofia já
não admite que seja possível um sistema de pensamento único que ofereça uma
única explicação para o todo da realidade. Por isso, esta definição também não
pode ser aceita.
4. Fundamentação
teórica e crítica dos conhecimentos e das práticas. A Filosofia, cada vez
mais, ocupa-se com as condições e os princípios do conhecimento que pretenda
ser racional e verdadeiro; com a origem, a forma e o conteúdo dos valores
éticos, políticos, artísticos e culturais; com a compreensão das causas e das
formas da ilusão e do preconceito no plano individual e coletivo; com as
transformações históricas dos conceitos, das idéias e dos valores.
A
Filosofia volta-se, também, para o estudo da consciência em suas várias
modalidades: percepção, imaginação, memória, linguagem, inteligência,
experiência, reflexão, comportamento, vontade, desejo e paixões, procurando
descrever as formas e os conteúdos dessas modalidades de relação entre o ser
humano e o mundo, do ser humano consigo mesmo e com os outros. Finalmente, a
Filosofia visa ao estudo e à interpretação de idéias ou significações gerais
como: realidade, mundo, natureza, cultura, história, subjetividade,
objetividade, diferença, repetição, semelhança, conflito, contradição, mudança,
etc.
Sem
abandonar as questões sobre a essência da realidade, a Filosofia procura diferenciar-se
das ciências e das artes, dirigindo a investigação sobre o mundo natural e o
mundo histórico (ou humano) num momento muito preciso: quando perdemos nossas
certezas cotidianas e quando as ciências e as artes ainda não ofereceram outras
certezas para substituir as que perdemos.
Em
outras palavras, a Filosofia se interessa por aquele instante em que a
realidade natural (o mundo das coisas) e a histórica (o mundo dos homens)
tornam-se estranhas, espantosas, incompreensíveis e enigmáticas, quando o senso
comum já não sabe o que pensar e dizer e as ciências e as artes ainda não sabem
o que pensar e dizer.
Esta
última descrição da atividade filosófica capta a Filosofia como análise
(das condições da ciência, da religião, da arte, da moral), como reflexão
(isto é, volta da consciência para si mesma para conhecer-se enquanto
capacidade para o conhecimento, o sentimento e a ação) e como crítica
(das ilusões e dos preconceitos individuais e coletivos, das teorias e práticas
científicas, políticas e artísticas), essas três atividades (análise, reflexão
e crítica) estando orientadas pela elaboração filosófica de significações
gerais sobre a realidade e os seres humanos. Além de análise, reflexão e
crítica, a Filosofia é a busca do fundamento e do sentido da realidade em suas
múltiplas formas indagando o que são, qual sua permanência e qual a necessidade
interna que as transforma em outras. O que é o ser e o aparecer-desaparecer dos
seres?
A
Filosofia não é ciência: é uma reflexão crítica sobre os procedimentos e conceitos
científicos. Não é religião: é uma reflexão crítica sobre as origens e formas
das crenças religiosas. Não é arte: é uma interpretação crítica dos conteúdos,
das formas, das significações das obras de arte e do trabalho artístico. Não é
sociologia nem psicologia, mas a interpretação e avaliação crítica dos
conceitos e métodos da sociologia e da psicologia. Não é política, mas
interpretação, compreensão e reflexão sobre a origem, a natureza e as formas do
poder. Não é história, mas interpretação do sentido dos acontecimentos enquanto
inseridos no tempo e compreensão do que seja o próprio tempo. Conhecimento do
conhecimento e da ação humanos, conhecimento da transformação temporal dos
princípios do saber e do agir, conhecimento da mudança das formas do real ou
dos seres, a Filosofia sabe que está na História e que possui uma história.
Inútil? Útil?
O
primeiro ensinamento filosófico é perguntar: O que é o útil? Para que e para
quem algo é útil? O que é o inútil? Por que e para quem algo é inútil?
O
senso comum de nossa sociedade considera útil o que dá prestígio, poder, fama e
riqueza. Julga o útil pelos resultados visíveis das coisas e das ações,
identificando utilidade e a famosa expressão “levar vantagem em tudo”. Desse
ponto de vista, a Filosofia é inteiramente inútil e defende o direito de ser
inútil.
Não
poderíamos, porém, definir o útil de outra maneira?
Platão
definia a Filosofia como um saber verdadeiro que deve ser usado em benefício
dos seres humanos.
Descartes
dizia que a Filosofia é o estudo da sabedoria, conhecimento perfeito de todas
as coisas que os humanos podem alcançar para o uso da vida, a conservação da
saúde e a invenção das técnicas e das artes.
Kant
afirmou que a Filosofia é o conhecimento que a razão adquire de si mesma para
saber o que pode conhecer e o que pode fazer, tendo como finalidade a
felicidade humana.
Marx
declarou que a Filosofia havia passado muito tempo apenas contemplando o mundo
e que se tratava, agora, de conhecê-lo para transformá-lo, transformação que
traria justiça, abundância e felicidade para todos.
Merleau-Ponty
escreveu que a Filosofia é um despertar para ver e mudar nosso mundo.
Espinosa
afirmou que a Filosofia é um caminho árduo e difícil, mas que pode ser
percorrido por todos, se desejarem a liberdade e a felicidade.
Qual
seria, então, a utilidade da Filosofia?
Se
abandonar a ingenuidade e os preconceitos do senso comum for útil; se não se
deixar guiar pela submissão às idéias dominantes e aos poderes estabelecidos
for útil; se buscar compreender a significação do mundo, da cultura, da
história for útil; se conhecer o sentido das criações humanas nas artes, nas
ciências e na política for útil; se dar a cada um de nós e à nossa sociedade os
meios para serem conscientes de si e de suas ações numa prática que deseja a
liberdade e a felicidade para todos for útil, então podemos dizer que a
Filosofia é o mais útil de todos os saberes de que os seres humanos são
capazes.
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