A origem da filosofia
Convite à Filosofia
De Marilena Chaui
Ed. Ática, São Paulo, 2000.
De Marilena Chaui
Ed. Ática, São Paulo, 2000.
Unidade 1
A Filosofia
A Filosofia
Capítulo 1
A origem da Filosofia
A origem da Filosofia
A palavra filosofia
A
palavra filosofia é grega. É composta por duas outras: philo e sophia.
Philo deriva-se de philia, que significa amizade, amor fraterno,
respeito entre os iguais. Sophia quer dizer sabedoria e dela vem a
palavra sophos, sábio.
Filosofia
significa, portanto, amizade pela sabedoria, amor e respeito pelo saber. Filósofo:
o que ama a sabedoria, tem amizade pelo saber, deseja saber.
Assim,
filosofia indica um estado de espírito, o da pessoa que ama, isto é, deseja o
conhecimento, o estima, o procura e o respeita.
Atribui-se
ao filósofo grego Pitágoras de Samos (que viveu no século V antes de Cristo) a
invenção da palavra filosofia. Pitágoras teria afirmado que a sabedoria
plena e completa pertence aos deuses, mas que os homens podem desejá-la ou
amá-la, tornando-se filósofos.
Dizia
Pitágoras que três tipos de pessoas compareciam aos jogos olímpicos (a festa
mais importante da Grécia): as que iam para comerciar durante os jogos, ali
estando apenas para servir aos seus próprios interesses e sem preocupação com
as disputas e os torneios; as que iam para competir, isto é, os atletas e
artistas (pois, durante os jogos também havia competições artísticas: dança,
poesia, música, teatro); e as que iam para contemplar os jogos e torneios, para
avaliar o desempenho e julgar o valor dos que ali se apresentavam. Esse
terceiro tipo de pessoa, dizia Pitágoras, é como o filósofo.
Com
isso, Pitágoras queria dizer que o filósofo não é movido por interesses
comerciais - não coloca o saber como propriedade sua, como uma coisa para ser
comprada e vendida no mercado; também não é movido pelo desejo de competir -
não faz das idéias e dos conhecimentos uma habilidade para vencer competidores
ou “atletas intelectuais”; mas é movido pelo desejo de observar, contemplar,
julgar e avaliar as coisas, as ações, a vida: em resumo, pelo desejo de saber.
A verdade não pertence a ninguém, ela é o que buscamos e que está diante de nós
para ser contemplada e vista, se tivermos olhos (do espírito) para vê-la.
A Filosofia é grega
A
Filosofia, entendida como aspiração ao conhecimento racional, lógico e
sistemático da realidade natural e humana, da origem e causas do mundo e de
suas transformações, da origem e causas das ações humanas e do próprio
pensamento, é um fato tipicamente grego.
Evidentemente,
isso não quer dizer, de modo algum, que outros povos, tão antigos quanto os
gregos, como os chineses, os hindus, os japoneses, os árabes, os persas, os
hebreus, os africanos ou os índios da América não possuam sabedoria, pois
possuíam e possuem. Também não quer dizer que todos esses povos não tivessem
desenvolvido o pensamento e formas de conhecimento da Natureza e dos seres
humanos, pois desenvolveram e desenvolvem.
Quando
se diz que a Filosofia é um fato grego, o que se quer dizer é que ela possui
certas características, apresenta certas formas de pensar e de exprimir os
pensamentos, estabelece certas concepções sobre o que sejam a realidade, o
pensamento, a ação, as técnicas, que são completamente diferentes das
características desenvolvidas por outros povos e outras culturas.
Vejamos
um exemplo. Os chineses desenvolveram um pensamento muito profundo sobre a
existência de coisas, seres e ações contrários ou opostos, que formam a
realidade. Deram às oposições o nome de dois princípios: Yin e Yang. Yin é o
princípio feminino passivo na Natureza, representado pela escuridão, o frio e a
umidade; Yang é o princípio masculino ativo na Natureza, representado pela luz,
o calor e o seco. Os dois princípios se combinam e formam todas as coisas, que,
por isso, são feitas de contrários ou de oposições. O mundo, portanto, é feito
da atividade masculina e da passividade feminina.
Tomemos
agora um filósofo grego, por exemplo, o próprio Pitágoras. Que diz ele? Que a
Natureza é feita de um sistema de relações ou de proporções matemáticas
produzidas a partir da unidade (o número 1 e o ponto), da oposição entre os
números pares e ímpares, e da combinação entre as superfícies e os volumes (as
figuras geométricas), de tal modo que essas proporções e combinações aparecem
para nossos órgãos dos sentidos sob a forma de qualidades contrárias:
quente-frio, seco-úmido, áspero-liso, claro-escuro, grande-pequeno,
doce-amargo, duro-mole, etc. Para Pitágoras, o pensamento alcança a realidade
em sua estrutura matemática, enquanto nossos sentidos ou nossa percepção
alcançam o modo como a estrutura matemática da Natureza aparece para nós, isto
é, sob a forma de qualidades opostas.
Qual
a diferença entre o pensamento chinês e o do filósofo grego?
O
pensamento chinês toma duas características (masculino e feminino) existentes
em alguns seres (os animais e os humanos) e considera que o Universo inteiro é
feito da oposição entre qualidades atribuídas a dois sexos diferentes, de sorte
que o mundo é organizado pelo princípio da sexualidade animal ou humana.
O
pensamento de Pitágoras apanha a Natureza numa generalidade muito mais ampla do
que a sexualidade própria a alguns seres da Natureza, e faz distinção entre as
qualidades sensoriais que nos aparecem e a estrutura invisível da Natureza,
que, para ele, é de tipo matemático e alcançada apenas pelo intelecto, ou
inteligência.
São
diferenças desse tipo, além de muitas outras, que nos levam a dizer que existe
uma sabedoria chinesa, uma sabedoria hindu, uma sabedoria dos índios, mas não
há filosofia chinesa, filosofia hindu ou filosofia indígena.
Em
outras palavras, Filosofia é um modo de pensar e exprimir os pensamentos que
surgiu especificamente com os gregos e que, por razões históricas e políticas,
tornou-se, depois, o modo de pensar e de se exprimir predominante da chamada
cultura européia ocidental da qual, em decorrência da colonização portuguesa do
Brasil, nós também participamos.
Através
da Filosofia, os gregos instituíram para o Ocidente europeu as bases e os
princípios fundamentais do que chamamos razão, racionalidade, ciência, ética,
política, técnica, arte.
Aliás,
basta observarmos que palavras como lógica, técnica, ética, política,
monarquia, anarquia, democracia, física, diálogo, biologia, cronologia, gênese,
genealogia, cirurgia, ortopedia, pedagogia, farmácia, entre muitas outras, são
palavras gregas, para percebermos a influência decisiva e predominante da Filosofia
grega sobre a formação do pensamento e das instituições das sociedades
européias ocidentais.
É
por isso que, em decorrência do predomínio da economia capitalista criada pelo
Ocidente e que impõe um certo tipo de desenvolvimento das ciências e das técnicas,
falamos, por exemplo, em “ocidentalização dos chineses”, “ocidentalização dos
árabes”, etc. Com isso queremos significar que modos de pensar e de agir,
criados no Ocidente pela Filosofia grega, foram incorporados até mesmo por
culturas e sociedades muito diferentes daquela onde nasceu a Filosofia.
É
pelo mesmo motivo que falamos em “orientalismos” e “orientalistas” para indicar
pessoas que buscam no budismo, no confucionismo, no Yin e no Yang, nos mantras,
nas pirâmides, nas auras, nas pedras e cristais maneiras de pensar e de
explicar a realidade, a Natureza, a vida e as ações humanas que não são
próprias ou específicas do Ocidente, isto é, são diferentes do padrão de
pensamento e de explicação que foram criados pelos gregos a partir do século VII
antes de Cristo, época em que nasce a Filosofia.
O legado da Filosofia grega para o
Ocidente europeu
Por
causa da colonização européia das Américas, nós também fazemos parte - ainda
que de modo inferiorizado e colonizado - do Ocidente europeu e assim também
somos herdeiros do legado que a Filosofia grega deixou para o pensamento
ocidental europeu.
Desse
legado, podemos destacar como principais contribuições as seguintes:
● A
idéia de que a Natureza opera obedecendo a leis e princípios necessários e
universais, isto é, os mesmos em toda a parte e em todos os tempos. Assim, por
exemplo, graças aos gregos, no século XVII da nossa era, o filósofo inglês
Isaac Newton estabeleceu a lei da gravitação universal de todos os corpos da
Natureza.
A
lei da gravitação afirma que todo corpo, quando sofre a ação de um outro,
produz uma reação igual e contrária, que pode ser calculada usando como
elementos do cálculo a massa do corpo afetado, a velocidade e o tempo com que a
ação e a reação se deram.
Essa
lei é necessária, isto é, nenhum corpo do Universo escapa dela e pode
funcionar de outra maneira que não desta; e esta lei é universal, isto
é, válida para todos os corpos em todos os tempos e lugares.
Um
outro exemplo: as leis geométricas do triângulo ou do círculo, conforme
demonstraram os filósofos gregos, são universais e necessárias, isto é, seja em
Tóquio em 1993, em Copenhague em 1970, em Lisboa em 1810, em São Paulo em 1792,
em Moçambique em 1661, ou em Nova York em 1975, as leis do triângulo ou do
círculo são necessariamente as mesmas.
● A
idéia de que as leis necessárias e universais da Natureza podem ser plenamente
conhecidas pelo nosso pensamento, isto é, não são conhecimentos misteriosos e
secretos, que precisariam ser revelados por divindades, mas são conhecimentos
que o pensamento humano, por sua própria força e capacidade, pode alcançar.
● A
idéia de que nosso pensamento também opera obedecendo a leis, regras e normas
universais e necessárias, segundo as quais podemos distinguir o verdadeiro do
falso. Em outras palavras, a idéia de que o nosso pensamento é lógico ou segue
leis lógicas de funcionamento.
Nosso
pensamento diferencia uma afirmação de uma negação porque, na afirmação,
atribuímos alguma coisa a outra coisa (quando afirmamos que “Sócrates é um ser
humano”, atribuímos humanidade a Sócrates) e, na negação, retiramos alguma
coisa de outra (quando dizemos “este caderno não é verde”, estamos retirando do
caderno a cor verde).
Nosso
pensamento distingue quando uma afirmação é verdadeira ou falsa. Se alguém apresentar
o seguinte raciocínio: “Todos os homens são mortais. Sócrates é homem. Logo,
Sócrates é mortal”, diremos que a afirmação “Sócrates é mortal” é verdadeira,
porque foi concluída de outras afirmações que já sabemos serem verdadeiras.
● A
idéia de que as práticas humanas, isto é, a ação moral, a política, as técnicas
e as artes dependem da vontade livre, da deliberação e da discussão, da nossa
escolha passional (ou emocional) ou racional, de nossas preferências, segundo
certos valores e padrões, que foram estabelecidos pelos próprios seres humanos
e não por imposições misteriosas e incompreensíveis, que lhes teriam sido
feitas por forças secretas, invisíveis, sejam elas divinas ou naturais, e
impossíveis de serem conhecidas.
● A
idéia de que os acontecimentos naturais e humanos são necessários, porque
obedecem a leis naturais ou da natureza humana, mas também podem ser
contingentes ou acidentais, quando dependem das escolhas e deliberações dos
homens, em condições determinadas.
Dessa
forma, uma pedra cai porque seu peso, por uma lei natural, exige que ela caia
natural e necessariamente; um ser humano anda porque as leis anatômicas e
fisiológicas que regem o seu corpo fazem com que ele tenha os meios necessários
para a locomoção.
No
entanto, se uma pedra, ao cair, atingir a cabeça de um passante, esse
acontecimento é contingente ou acidental. Por quê? Porque, se o passante não
estivesse andando por ali naquela hora, a pedra não o atingiria. Assim, a queda
da pedra é necessária e o andar de um ser humano é necessário, mas que uma
pedra caia sobre minha cabeça quando ando é inteiramente contingente ou
acidental.
Todavia,
é muito diferente a situação das ações humanas. É verdade que é por uma
necessidade natural ou por uma lei da Natureza que ando. Mas é por deliberação
voluntária que ando para ir à escola em vez de andar para ir ao cinema, por
exemplo. É verdade que é por uma lei necessária da Natureza que os corpos
pesados caem, mas é por uma deliberação humana e por uma escolha voluntária que
fabrico uma bomba, a coloco num avião e a faço despencar sobre Hiroshima.
Um
dos legados mais importantes da Filosofia grega é, portanto, essa diferença
entre o necessário e o contingente, pois ela nos permite evitar o fatalismo -
“tudo é necessário, temos que nos conformar e nos resignar” -, mas também
evitar a ilusão de que podemos tudo quanto quisermos, se alguma força
extranatural ou sobrenatural nos ajudar, pois a Natureza segue leis necessárias
que podemos conhecer e nem tudo é possível por mais que o queiramos.
● A
idéia de que os seres humanos, por Natureza, aspiram ao conhecimento
verdadeiro, à felicidade, à justiça, isto é, que os seres humanos não vivem nem
agem cegamente, mas criam valores pelo quais dão sentido às suas vidas e às
suas ações.
A
Filosofia surge, portanto, quando alguns gregos, admirados e espantados com a
realidade, insatisfeitos com as explicações que a tradição lhes dera, começaram
a fazer perguntas e buscar respostas para elas, demonstrando que o mundo e os
seres humanos, os acontecimentos e as coisas da Natureza, os acontecimentos e
as ações humanas podem ser conhecidos pela razão humana, e que a própria razão
é capaz de conhecer-se a si mesma.
Em
suma, a Filosofia surge quando se descobriu que a verdade do mundo e dos
humanos não era algo secreto e misterioso, que precisasse ser revelado por
divindades a alguns escolhidos, mas que, ao contrário, podia ser conhecida por
todos, através da razão, que é a mesma em todos; quando se descobriu que tal
conhecimento depende do uso correto da razão ou do pensamento e que, além da
verdade poder ser conhecida por todos, podia, pelo mesmo motivo, ser ensinada
ou transmitida a todos.
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