O nascimento da filosofia
Convite à Filosofia
De Marilena Chaui
Ed. Ática, São Paulo, 2000.
De Marilena Chaui
Ed. Ática, São Paulo, 2000.
Unidade 1
A Filosofia
A Filosofia
Capítulo 2
O nascimento da Filosofia
O nascimento da Filosofia
Ouvindo a voz dos poetas
Escutemos,
por um instante, a voz dos poetas, porque ela costuma exprimir o que chamamos
de “sentimento do mundo”, o sentimento da velhice e da juventude perene do
mundo, da grandeza e da pequeneza dos humanos ou dos mortais.
Assim,
o poeta grego Arquíloco escreveu:
E
não te esqueças, meu coração,
que as coisas humanas apenas
mudanças incertas são.
que as coisas humanas apenas
mudanças incertas são.
Outro
poeta grego, Teógnis, cantando sobre a brevidade da vida, dizia:
Choremos
a juventude e a velhice também,
pois a primeira foge e a segunda sempre vem.
pois a primeira foge e a segunda sempre vem.
Também
o poeta grego Píndaro falava do sentimento das coisas humanas como passageiras:
A
glória dos mortais num só dia cresce,
Mas basta um só dia, contrário e funesto,
para que o destino, impiedoso, num gesto
a lance por terra e ela, súbito, fenece.
Mas basta um só dia, contrário e funesto,
para que o destino, impiedoso, num gesto
a lance por terra e ela, súbito, fenece.
Mas
não só a vida e os feitos dos humanos são breves e frágeis. Os poetas também
exprimem o sentimento de que o mundo é tecido por mudanças e repetições
intermináveis. A esse respeito, a poetisa brasileira Orides Fontela escreveu:
O
vento, a chuva, o sol, o frio
Tudo vai e vem, tudo vem e vai.
Tudo vai e vem, tudo vem e vai.
E
o poeta brasileiro, Carlos Drummond, por sua vez, lamentou:
Como
a vida muda.
Como a vida é muda.
Como a vida é nuda.
Como a vida é nada.
Como a vida é tudo.
...
Como a vida é senha
de outra vida nova
...
Como a vida é vida
ainda quando morte
...
Como a vida é forte
em suas algemas.
...
Como a vida é bela
...
Como a vida vale
mais que a própria vida
sempre renascida.
Como a vida é muda.
Como a vida é nuda.
Como a vida é nada.
Como a vida é tudo.
...
Como a vida é senha
de outra vida nova
...
Como a vida é vida
ainda quando morte
...
Como a vida é forte
em suas algemas.
...
Como a vida é bela
...
Como a vida vale
mais que a própria vida
sempre renascida.
O
sentimento de renovação e beleza do mundo, da vida, dos seres humanos é o que
transparece nos versos do poeta brasileiro Mário Quintana, nos seguintes
versos:
Quando
abro a cada manhã a janela do meu quarto
É como se abrisse o mesmo livro
Numa página nova...
É como se abrisse o mesmo livro
Numa página nova...
E,
por isso, em outros versos seus, lemos:
O
encanto
sobrenatural
que há
nas coisas da Natureza!
...
se nela algo te dá
encanto ou medo,
não me digas que seja feia
ou má,
é, acaso, singular...
sobrenatural
que há
nas coisas da Natureza!
...
se nela algo te dá
encanto ou medo,
não me digas que seja feia
ou má,
é, acaso, singular...
Numa
das obras poéticas mais importantes da cultura do Ocidente europeu, as Metamorfoses,
o poeta romano Ovídio exprimiu todos esses sentimentos que experimentamos
diante da mudança, da renovação e da repetição, do nascimento e da morte das
coisas e dos seres humanos. Na parte final de sua obra, lemos:
Não
há coisa alguma que persista em todo o Universo. Tudo flui, e tudo só apresenta
uma imagem passageira. O próprio tempo passa com um movimento contínuo, como um
rio... O que foi antes já não é, o que não tinha sido é, e todo instante é uma
coisa nova. Vês a noite, próxima do fim, caminhar para o dia, e à claridade do
dia suceder a escuridão da noite... Não vês as estações do ano se sucederem,
imitando as idades de nossa vida? Com efeito, a primavera, quando surge, é
semelhante à criança nova... A planta nova, pouco vigorosa, rebenta em brotos e
enche de esperança o agricultor. Tudo floresce. O fértil campo resplandece com
o colorido das flores, mas ainda falta vigor às folhas. Entra, então, a quadra
mais forte e vigorosa, o verão: é a robusta mocidade, fecunda e ardente. Chega,
por sua vez, o outono: passou o fervor da mocidade, é a quadra da maturidade, o
meio-termo entre o jovem e o velho; as têmporas embranquecem. Vem, depois, o
tristonho inverno: é o velho trôpego, cujos cabelos ou caíram como as folhas
das árvores, ou, os que restaram, estão brancos como a neve dos caminhos.
Também nossos corpos mudam sempre e sem descanso... E também a Natureza não
descansa e, renovadora, encontra outras formas nas formas das coisas. Nada
morre no vasto mundo, mas tudo assume aspectos novos e variados... Todos os
seres têm sua origem noutros seres. Existe uma ave a que os fenícios dão o nome
de fênix. Não se alimenta de grãos ou ervas, mas das lágrimas do incenso e do
suco da amônia. Quando completa cinco séculos de vida, constrói um ninho no
alto de uma grande palmeira, feito de folhas de canela, do aromático nardo e da
mirra avermelhada. Ali se acomoda e termina a vida entre perfumes. De suas
cinzas, renasce uma pequena fênix, que viverá outros cinco séculos... Assim
também é a Natureza e tudo o que nela existe e persiste.
O que
perguntavam os primeiros filósofos
Por
que os seres nascem e morrem? Por que os semelhantes dão origem aos
semelhantes, de uma árvore nasce outra árvore, de um cão nasce outro cão, de
uma mulher nasce uma criança? Por que os diferentes também parecem fazer surgir
os diferentes: o dia parece fazer nascer a noite, o inverno parece fazer surgir
a primavera, um objeto escuro clareia com o passar do tempo, um objeto claro
escurece com o passar do tempo?
Por
que tudo muda? A criança se torna adulta, amadurece, envelhece e desaparece. A
paisagem, cheia de flores na primavera, vai perdendo o verde e as cores no
outono, até ressecar-se e retorcer-se no inverno. Por que um dia luminoso e
ensolarado, de céu azul e brisa suave, repentinamente, se torna sombrio,
coberto de nuvens, varrido por ventos furiosos, tomado pela tempestade, pelos
raios e trovões?
Por
que a doença invade os corpos, rouba-lhes a cor, a força? Por que o alimento
que antes me agradava, agora, que estou doente, me causa repugnância? Por que o
som da música que antes me embalava, agora, que estou doente, parece um ruído
insuportável?
Por
que o que parecia uno se multiplica em tantos outros? De uma só árvore, quantas
flores e quantos frutos nascem! De uma só gata, quantos gatinhos nascem!
Por
que as coisas se tornam opostas ao que eram? A água do copo, tão transparente e
de boa temperatura, torna-se uma barra dura e gelada, deixa de ser líquida e
transparente para tornar-se sólida e acinzentada. O dia, que começa frio e
gelado, pouco a pouco, se torna quente e cheio de calor.
Por
que nada permanece idêntico a si mesmo? De onde vêm os seres? Para onde vão,
quando desaparecem? Por que se transformam? Por que se diferenciam uns dos
outros? Mas também, por que tudo parece repetir-se? Depois do dia, a noite;
depois da noite, o dia. Depois do inverno, a primavera, depois da primavera, o
verão, depois deste, o outono e depois deste, novamente o inverno. De dia, o
sol; à noite, a lua e as estrelas. Na primavera, o mar é tranqüilo e propício à
navegação; no inverno, tempestuoso e inimigo dos homens. O calor leva as águas
para o céu e as traz de volta pelas chuvas. Ninguém nasce adulto ou velho, mas
sempre criança, que se torna adulto e velho.
Foram
perguntas como essas que os primeiros filósofos fizeram e para elas buscaram
respostas.
Sem
dúvida, a religião, as tradições e os mitos explicavam todas essas coisas, mas
suas explicações já não satisfaziam aos que interrogavam sobre as causas da
mudança, da permanência, da repetição, da desaparição e do ressurgimento de
todos os seres. Haviam perdido força explicativa, não convenciam nem
satisfaziam a quem desejava conhecer a verdade sobre o mundo.
O
nascimento da Filosofia
Os historiadores da Filosofia dizem que ela
possui data e local de nascimento: final do século VII e início do século VI
antes de Cristo, nas colônias gregas da Ásia Menor (particularmente as que
formavam uma região denominada Jônia), na cidade de Mileto. E o primeiro
filósofo foi Tales de Mileto.
Além de possuir data e local de nascimento e
de possuir seu primeiro autor, a Filosofia também possui um conteúdo preciso ao
nascer: é uma cosmologia. A palavra cosmologia é composta de duas
outras: cosmos, que significa mundo ordenado e organizado, e logia,
que vem da palavra logos, que significa pensamento racional, discurso
racional, conhecimento. Assim, a Filosofia nasce como conhecimento racional da
ordem do mundo ou da Natureza, donde, cosmologia.
Apesar da segurança desses dados, existe um
problema que, durante séculos, vem ocupando os historiadores da Filosofia: o de
saber se a Filosofia - que é um fato especificamente grego - nasceu por si
mesma ou dependeu de contribuições da sabedoria oriental (egípcios, assírios,
persas, caldeus, babilônios) e da sabedoria de civilizações que antecederam à
grega, na região que, antes de ser a Grécia ou a Hélade, abrigara as
civilizações de Creta, Minos, Tirento e Micenas.
Durante muito tempo, considerou-se que a
Filosofia nascera por transformações que os gregos operaram na sabedoria
oriental (egípcia, persa, caldéia e babilônica). Assim, filósofos como Platão e
Aristóteles afirmavam a origem oriental da Filosofia. Os gregos, diziam eles,
povo comerciante e navegante, descobriram, através das viagens, a agrimensura
dos egípcios (usada para medir as terras, após as cheias do Nilo), a astrologia
dos caldeus e dos babilônios (usada para prever grandes guerras, subida e queda
de reis, catástrofes como peste, fome, furacões), as genealogias dos persas
(usadas para dar continuidade às linhagens e dinastias dos governantes), os
mistérios religiosos orientais referentes aos rituais de purificação da alma
(para livrá-la da reencarnação contínua e garantir-lhe o descanso eterno), etc.
A Filosofia teria nascido pelas transformações que os gregos impuseram a esses
conhecimentos.
Dessa forma, da agrimensura, os gregos
fizeram nascer duas ciências: a aritmética e a geometria; da astrologia,
fizeram surgir também duas ciências: a astronomia e a meteorologia; das
genealogias, fizeram surgir mais uma outra ciência: a história; dos mistérios
religiosos de purificação da alma, fizeram surgir as teorias filosóficas sobre
a natureza e o destino da alma humana.
Todos esses conhecimentos teriam propiciado o
aparecimento da Filosofia, isto é, da cosmologia, de sorte que a Filosofia só
teria podido nascer graças as saber oriental.
Essa idéia de uma filiação oriental da
Filosofia foi muito defendida oito séculos depois de seu nascimento (durante os
séculos II e III depois de Cristo), no período do Império Romano. Quem a
defendia? Os pensadores judaicos, como Filo de Alexandria, e os Padres da
Igreja, como Eusébio de Cesaréia e Clemente de Alexandria.
Por que defendiam a origem oriental da
Filosofia grega? Pelo seguinte motivo: a Filosofia grega tornara-se, em toda a
Antigüidade clássica, e para os poderosos da época, os romanos, a forma
superior ou mais elevada do pensamento e da moral.
Os judeus, para valorizar seu pensamento,
desejavam que a Filosofia tivesse uma origem oriental, dizendo que o pensamento
de filósofos importantes, como Platão, tinha surgido no Egito, onde se
originara o pensamento de Moisés, de modo que havia uma ligação entre a
Filosofia grega e a Bíblia.
Os Padres da Igreja, por sua vez, queriam
mostrar que os ensinamentos de Jesus eram elevados e perfeitos, não eram
superstição, nem primitivos e incultos, e por isso mostravam que os filósofos
gregos estavam filiados a correntes de pensamento místico e oriental e, dessa
maneira, estariam próximos do cristianismo, que é uma religião oriental.
No entanto, nem todos aceitaram a tese
chamada “orientalista”, e muitos, sobretudo no século XIX da nossa era,
passaram a falar na Filosofia como sendo o “milagre grego”.
Com a palavra “milagre” queriam dizer várias
coisas:
● que a Filosofia surgiu inesperada e
espantosamente na Grécia, sem que nada anterior a preparasse;
● que a Filosofia grega foi um acontecimento
espontâneo, único e sem par, como é próprio de um milagre;
● que os gregos foram um povo excepcional,
sem nenhum outro semelhante a eles, nem antes e nem depois deles, e por isso
somente eles poderiam ter sido capazes de criar a Filosofia, como foram os
únicos a criar as ciências e a dar às artes uma elevação que nenhum outro povo
conseguiu, nem antes e nem depois deles.
Nem
oriental, nem milagre
Desde o final do século XIX da nossa era e
durante o século XX, estudos históricos, arqueológicos, lingüísticos,
literários e artísticos corrigiram os exageros das duas teses, isto é, tanto a
redução da Filosofia à sua origem oriental, quanto o “milagre grego”.
Retirados os exageros do orientalismo,
percebe-se que, de fato, a Filosofia tem dívidas com a sabedoria dos orientais,
não só porque as viagens colocaram os gregos em contato com os conhecimentos
produzidos por outros povos (sobretudo os egípcios, persas, babilônios,
assírios e caldeus), mas também porque os dois maiores formadores da cultura
grega antiga, os poetas Homero e Hesíodo, encontraram nos mitos e nas religiões
dos povos orientais, bem como nas culturas que precederam a grega, os elementos
para elaborar a mitologia grega, que, depois, seria transformada racionalmente
pelos filósofos.
Assim, os estudos recentes mostraram que
mitos, cultos religiosos, instrumentos musicais, dança, música, poesia,
utensílios domésticos e de trabalho, formas de habitação, formas de parentesco
e formas de organização tribal dos gregos foram resultado de contatos profundos
com as culturas mais avançadas do Oriente e com a herança deixada pelas
culturas que antecederam a grega, nas regiões onde ela se implantou.
Esses mesmos estudos apontaram, porém, que,
se nos afastarmos dos exageros da idéia de um “milagre grego”, podemos perceber
o que havia de verdadeiro nessa tese. De fato, os gregos imprimiram mudanças de
qualidade tão profundas no que receberam do Oriente e das culturas precedentes,
que até pareceria terem criado sua própria cultura a partir de si mesmos.
Dessas mudanças, podemos mencionar quatro que nos darão uma idéia da
originalidade grega:
1. Com relação aos mitos: quando comparamos os
mitos orientais, cretenses, micênicos, minóicos e os que aparecem nos poetas
Homero e Hesíodo, vemos que eles retiraram os aspectos apavorantes e
monstruosos dos deuses e do início do mundo; humanizaram os deuses, divinizaram
os homens; deram racionalidade a narrativas sobre as origens das coisas, dos
homens, das instituições humanas (como o trabalho, as leis, a moral);
2. Com relação aos conhecimentos: os gregos
transformaram em ciência (isto é, num conhecimento racional, abstrato e
universal) aquilo que eram elementos de uma sabedoria prática para o uso direto
na vida.
Assim, transformaram em matemática
(aritmética, geometria, harmonia) o que eram expedientes práticos para medir,
contar e calcular; transformaram em astronomia (conhecimento racional da
natureza e do movimento dos astros) aquilo que eram práticas de adivinhação e
previsão do futuro; transformaram em medicina (conhecimento racional sobre o
corpo humano, a saúde e a doença) aquilo que eram práticas de grupos religiosos
secretos para a cura misteriosa das doenças. E assim por diante;
3. Com relação à organização social e política:
os gregos não inventaram apenas a ciência ou a Filosofia, mas inventaram também
a política. Todas as sociedades anteriores a eles conheciam e praticavam a autoridade
e o governo. Mas, por que não inventaram a política propriamente dita?
Nas sociedades orientais e não-gregas, o
poder e o governo eram exercidos como autoridade absoluta da vontade pessoal e
arbitrária de um só homem ou de um pequeno grupo de homens que decidiam sobre
tudo, sem consultar a ninguém e sem justificar suas decisões para ninguém.
Os gregos inventaram a política (palavra que
vem de polis, que, em grego, significa cidade organizada por leis e
instituições) porque instituíram práticas pelas quais as decisões eram tomadas
a partir de discussões e debates públicos e eram adotadas ou revogadas por voto
em assembléias públicas; porque estabeleceram instituições públicas (tribunais,
assembléias, separação entre autoridade do chefe da família e autoridade
pública, entre autoridade político-militar e autoridade religiosa) e sobretudo
porque criaram a idéia da lei e da justiça como expressões da vontade coletiva
pública e não como imposição da vontade de um só ou de um grupo, em nome de
divindades.
Os gregos criaram a política porque separaram
o poder político e duas outras formas tradicionais de autoridade: a do chefe de
família e a do sacerdote ou mago;
4. Com relação ao pensamento: diante da herança
recebida, os gregos inventaram a idéia ocidental da razão como um pensamento
sistemático que segue regras, normas e leis de valor universal (isto é, válidas
em todos os tempos e lugares. Assim, por exemplo, em qualquer tempo e lugar 2 +
2 serão sempre 4; o triângulo sempre terá três lados; o Sol sempre será maior
do que a Terra, mesmo que ele pareça menor do que ela, etc.).
Mito
e Filosofia
Resolvido esse problema, agora temos um outro
que também tem ocupado muito os estudiosos. O novo problema pode ser assim
formulado: a Filosofia nasceu realizando uma transformação gradual sobre os
mitos gregos ou nasceu por uma ruptura radical com os mitos?
O que é um mito?
Um mito é uma narrativa sobre a origem de
alguma coisa (origem dos astros, da Terra, dos homens, das plantas, dos
animais, do fogo, da água, dos ventos, do bem e do mal, da saúde e da doença,
da morte, dos instrumentos de trabalho, das raças, das guerras, do poder,
etc.).
A palavra mito vem do grego, mythos,
e deriva de dois verbos: do verbo mytheyo (contar, narrar, falar alguma
coisa para outros) e do verbo mytheo (conversar, contar, anunciar,
nomear, designar). Para os gregos, mito é um discurso pronunciado ou proferido
para ouvintes que recebem como verdadeira a narrativa, porque confiam naquele
que narra; é uma narrativa feita em público, baseada, portanto, na autoridade e
confiabilidade da pessoa do narrador. E essa autoridade vem do fato de que ele
ou testemunhou diretamente o que está narrando ou recebeu a narrativa de quem
testemunhou os acontecimentos narrados.
Quem narra o mito? O poeta-rapsodo. Quem é
ele? Por que tem autoridade? Acredita-se que o poeta é um escolhido dos deuses,
que lhe mostram os acontecimentos passados e permitem que ele veja a origem de
todos os seres e de todas as coisas para que possa transmiti-la aos ouvintes.
Sua palavra - o mito - é sagrada porque vem de uma revelação divina. O mito é,
pois, incontestável e inquestionável.
Como o mito narra a origem do mundo e de tudo
o que nele existe?
De três maneiras principais:
1. Encontrando o pai e a mãe das coisas e dos
seres, isto é, tudo o que existe decorre de relações sexuais entre forças
divinas pessoais. Essas relações geram os demais deuses: os titãs (seres
semi-humanos e semidivinos), os heróis (filhos de um deus com uma humana ou de
uma deusa com um humano), os humanos, os metais, as plantas, os animais, as
qualidades, como quente-frio, seco-úmido, claro-escuro, bom-mau, justo-injusto,
belo-feio, certo-errado, etc.
A narração da origem é, assim, uma genealogia,
isto é, narrativa da geração dos seres, das coisas, das qualidades, por outros
seres, que são seus pais ou antepassados.
Tomemos um exemplo da narrativa mítica.
Observando que as pessoas apaixonadas estão
sempre cheias de ansiedade e de plenitude, inventam mil expedientes para estar
com a pessoa amada ou para seduzi-la e também serem amadas, o mito narra a
origem do amor, isto é, o nascimento do deus Eros (que conhecemos mais com o
nome de Cupido):
Houve uma grande festa entre os deuses. Todos
foram convidados, menos a deusa Penúria, sempre miserável e faminta. Quando a
festa acabou, Penúria veio, comeu os restos e dormiu com o deus Poros (o astuto
engenhoso). Dessa relação sexual, nasceu Eros (ou Cupido), que, como sua mãe,
está sempre faminto, sedento e miserável, mas, como seu pai, tem mil astúcias
para se satisfazer e se fazer amado. Por isso, quando Eros fere alguém com sua
flecha, esse alguém se apaixona e logo se sente faminto e sedento de amor,
inventa astúcias para ser amado e satisfeito, ficando ora maltrapilho e
semimorto, ora rico e cheio de vida.
2. Encontrando uma rivalidade ou uma aliança
entre os deuses que faz surgir alguma coisa no mundo. Nesse caso, o mito narra
ou uma guerra entre as forças divinas, ou uma aliança entre elas para provocar
alguma coisa no mundo dos homens.
O poeta Homero, na Ilíada, que narra a
guerra de Tróia, explica por que, em certas batalhas, os troianos eram
vitoriosos e, em outras, a vitória cabia aos gregos. Os deuses estavam
divididos, alguns a favor de um lado e outros a favor do outro. A cada vez, o
rei dos deuses, Zeus, ficava com um dos partidos, aliava-se com um grupo e
fazia um dos lados - ou os troianos ou os gregos - vencer uma batalha.
A causa da guerra, aliás, foi uma rivalidade
entre as deusas. Elas apareceram em sonho para o príncipe troiano Paris,
oferecendo a ele seus dons e ele escolheu a deusa do amor, Afrodite. As outras
deusas, enciumadas, o fizeram raptar a grega Helena, mulher do general grego
Menelau, e isso deu início à guerra entre os humanos.
3. Encontrando as recompensas ou castigos que
os deuses dão a quem os desobedece ou a quem os obedece.
Como o mito narra, por exemplo, o uso do fogo
pelos homens? Para os homens, o fogo é essencial, pois com ele se diferenciam
dos animais, porque tanto passam a cozinhar os alimentos, a iluminar caminhos
na noite, a se aquecer no inverno quanto podem fabricar instrumentos de metal
para o trabalho e para a guerra.
Um titã, Prometeu, mais amigo dos homens do
que dos deuses, roubou uma centelha de fogo e a trouxe de presente para os
humanos. Prometeu foi castigado (amarrado num rochedo para que as aves de
rapina, eternamente, devorassem seu fígado) e os homens também. Qual foi o
castigo dos homens?
Os deuses fizeram uma mulher encantadora,
Pandora, a quem foi entregue uma caixa que conteria coisas maravilhosas, mas
nunca deveria ser aberta. Pandora foi enviada aos humanos e, cheia de
curiosidade e querendo dar a eles as maravilhas, abriu a caixa. Dela saíram
todas as desgraças, doenças, pestes, guerras e, sobretudo, a morte. Explica-se,
assim, a origem dos males no mundo.
Vemos, portanto, que o mito narra a origem
das coisas por meio de lutas, alianças e relações sexuais entre forças
sobrenaturais que governam o mundo e o destino dos homens. Como os mitos sobre
a origem do mundo são genealogias, diz-se que são cosmogonias e teogonias.
A palavra gonia vem de duas palavras
gregas: do verbo gennao (engendrar, gerar, fazer nascer e crescer) e do
substantivo genos (nascimento, gênese, descendência, gênero, espécie). Gonia,
portanto, quer dizer: geração, nascimento a partir da concepção sexual e do
parto. Cosmos, como já vimos, quer dizer mundo ordenado e organizado.
Assim, a cosmogonia é a narrativa sobre o nascimento e a organização do
mundo, a partir de forças geradoras (pai e mãe) divinas.
Teogonia é uma palavra composta de gonia
e theós, que, em grego, significa: as coisas divinas, os seres divinos,
os deuses. A teogonia é, portanto, a narrativa da origem dos deuses, a
partir de seus pais e antepassados.
Qual é a pergunta dos estudiosos? É a
seguinte: A Filosofia, ao nascer, é, como já dissemos, uma cosmologia, uma
explicação racional sobre a origem do mundo e sobre as causas das
transformações e repetições das coisas; para isso, ela nasce de uma
transformação gradual dos mitos ou de uma ruptura radical com os mitos?
Continua ou rompe com a cosmogonia e a teogonia?
Duas foram as respostas dadas.
A primeira delas foi dada nos fins do século
XIX e começo do século XX, quando reinava um grande otimismo sobre os poderes
científicos e capacidades técnicas do homem. Dizia-se, então, que a Filosofia
nasceu por uma ruptura radical com os mitos, sendo a primeira explicação
científica da realidade produzida pelo Ocidente.
A segunda resposta foi dada a partir de
meados do século XX, quando os estudos dos antropólogos e dos historiadores
mostraram a importância dos mitos na organização social e cultural das
sociedades e como os mitos estão profundamente entranhados nos modos de pensar
e de sentir de uma sociedade. Por isso, dizia-se que os gregos, como qualquer
outro povo, acreditavam em seus mitos e que a Filosofia nasceu, vagarosa e
gradualmente, do interior dos próprios mitos, como uma racionalização deles.
Atualmente consideram-se as duas respostas
exageradas e afirma-se que a Filosofia, percebendo as contradições e limitações
dos mitos, foi reformulando e racionalizando as narrativas míticas,
transformando-as numa outra coisa, numa explicação inteiramente nova e
diferente.
Quais são as diferenças entre Filosofia e
mito? Podemos apontar três como as mais importantes:
1. O mito pretendia narrar como as coisas eram
ou tinham sido no passado imemorial, longínquo e fabuloso, voltando-se para o
que era antes que tudo existisse tal como existe no presente. A Filosofia, ao
contrário, se preocupa em explicar como e por que, no passado, no presente e no
futuro (isto é, na totalidade do tempo), as coisas são como são;
2. O mito narrava a origem através de
genealogias e rivalidades ou alianças entre forças divinas sobrenaturais e
personalizadas, enquanto a Filosofia, ao contrário, explica a produção natural
das coisas por elementos e causas naturais e impessoais.
O mito falava em Urano, Ponto e Gaia; a
Filosofia fala em céu, mar e terra. O mito narra a origem dos seres celestes
(os astros), terrestres (plantas, animais, homens) e marinhos pelos casamentos
de Gaia com Urano e Ponto. A Filosofia explica o surgimento desses seres por
composição, combinação e separação dos quatro elementos - úmido, seco, quente e
frio, ou água, terra, fogo e ar.
3. O mito não se importava com contradições,
com o fabuloso e o incompreensível, não só porque esses eram traços próprios da
narrativa mítica, como também porque a confiança e a crença no mito vinham da
autoridade religiosa do narrador. A Filosofia, ao contrário, não admite
contradições, fabulação e coisas incompreensíveis, mas exige que a explicação
seja coerente, lógica e racional; além disso, a autoridade da explicação não
vem da pessoa do filósofo, mas da razão, que é a mesma em todos os seres
humanos.
Condições
históricas para o surgimento da Filosofia
Resolvido esse problema, temos ainda um
último a solucionar: O que tornou possível o surgimento da Filosofia na Grécia
no final do século VII e no início do século VI antes de Cristo? Quais as
condições materiais, isto é, econômicas, sociais, políticas e históricas que
permitiram o surgimento da Filosofia?
Podemos apontar como principais condições
históricas para o surgimento da Filosofia na Grécia:
● as viagens marítimas, que permitiram
aos gregos descobrir que os locais que os mitos diziam habitados por deuses,
titãs e heróis eram, na verdade, habitados por outros seres humanos; e que as
regiões dos mares que os mitos diziam habitados por monstros e seres fabulosos
não possuíam nem monstros nem seres fabulosos. As viagens produziram o
desencantamento ou a desmistificação do mundo, que passou, assim, a exigir uma
explicação sobre sua origem, explicação que o mito já não podia oferecer;
● a invenção do calendário, que é uma
forma de calcular o tempo segundo as estações do ano, as horas do dia, os fatos
importantes que se repetem, revelando, com isso, uma capacidade de abstração
nova, ou uma percepção do tempo como algo natural e não como um poder divino
incompreensível;
● a invenção da moeda, que permitiu
uma forma de troca que não se realiza através das coisas concretas ou dos
objetos concretos trocados por semelhança, mas uma troca abstrata, uma troca
feita pelo cálculo do valor semelhante das coisas diferentes, revelando,
portanto, uma nova capacidade de abstração e de generalização;
● o surgimento da vida urbana, com
predomínio do comércio e do artesanato, dando desenvolvimento a técnicas de
fabricação e de troca, e diminuindo o prestígio das famílias da aristocracia proprietária
de terras, por quem e para quem os mitos foram criados; além disso, o
surgimento de uma classe de comerciantes ricos, que precisava encontrar pontos
de poder e de prestígio para suplantar o velho poderio da aristocracia de
terras e de sangue (as linhagens constituídas pelas famílias), fez com que se
procurasse o prestígio pelo patrocínio e estímulo às artes, às técnicas e aos
conhecimentos, favorecendo um ambiente onde a Filosofia poderia surgir;
● a invenção da escrita alfabética,
que, como a do calendário e a da moeda, revela o crescimento da capacidade de
abstração e de generalização, uma vez que a escrita alfabética ou fonética,
diferentemente de outras escritas - como, por exemplo, os hieróglifos dos
egípcios ou os ideogramas dos chineses -, supõe que não se represente uma
imagem da coisa que está sendo dita, mas a idéia dela, o que dela se pensa e se
transcreve;
● a invenção da política, que introduz
três aspectos novos e decisivos para o nascimento da Filosofia:
1. A idéia da lei como expressão da vontade de
uma coletividade humana que decide por si mesma o que é melhor para si e como
ela definirá suas relações internas. O aspecto legislado e regulado da cidade -
da polis - servirá de modelo para a Filosofia propor o aspecto
legislado, regulado e ordenado do mundo como um mundo racional.
2. O surgimento de um espaço público, que faz
aparecer um novo tipo de palavra ou de discurso, diferente daquele que era
proferido pelo mito. Neste, um poeta-vidente, que recebia das deusas ligadas à
memória (a deusa Mnemosyne, mãe das Musas, que guiavam o poeta) uma iluminação
misteriosa ou uma revelação sobrenatural, dizia aos homens quais eram as
decisões dos deuses que eles deveriam obedecer.
Agora, com a polis, isto é, a cidade
política, surge a palavra como direito de cada cidadão de emitir em público sua
opinião, discuti-la com os outros, persuadi-los a tomar uma decisão proposta
por ele, de tal modo que surge o discurso político como a palavra humana compartilhada,
como diálogo, discussão e deliberação humana, isto é, como decisão racional e
exposição dos motivos ou das razões para fazer ou não fazer alguma coisa.
A política, valorizando o humano, o
pensamento, a discussão, a persuasão e a decisão racional, valorizou o
pensamento racional e criou condições para que surgisse o discurso ou a palavra
filosófica.
3. A política estimula um pensamento e um
discurso que não procuram ser formulados por seitas secretas dos iniciados em
mistérios sagrados, mas que procuram, ao contrário, ser públicos, ensinados,
transmitidos, comunicados e discutidos. A idéia de um pensamento que todos
podem compreender e discutir, que todos podem comunicar e transmitir, é
fundamental para a Filosofia.
Principais
características da Filosofia nascente
O pensamento filosófico em seu nascimento
tinha como traços principais:
● tendência à racionalidade, isto é, a razão
e somente a razão, com seus princípios e regras, é o critério da explicação de
alguma coisa;
● tendência a oferecer respostas conclusivas
para os problemas, isto é, colocado um problema, sua solução é submetida à
análise, à crítica, à discussão e à demonstração, nunca sendo aceita como uma
verdade, se não for provado racionalmente que é verdadeira;
● exigência de que o pensamento apresente
suas regras de funcionamento, isto é, o filósofo é aquele que justifica suas
idéias provando que segue regras universais do pensamento. Para os gregos, é
uma lei universal do pensamento que a contradição indica erro ou falsidade. Uma
contradição acontece quando afirmo e nego a mesma coisa sobre uma mesma coisa
(por exemplo: “Pedro é um menino e não um menino”, “A noite é escura e clara”,
“O infinito não tem limites e é limitado”). Assim, quando uma contradição
aparecer numa exposição filosófica, ela deve ser considerada falsa;
● recusa de explicações preestabelecidas e,
portanto, exigência de que, para cada problema, seja investigada e encontrada a
solução própria exigida por ele;
● tendência à generalização, isto é, mostrar
que uma explicação tem validade para muitas coisas diferentes porque, sob a
variação percebida pelos órgãos de nossos sentidos, o pensamento descobre
semelhanças e identidades.
Por exemplo, para meus olhos, meu tato e meu
olfato, o gelo é diferente da neblina, que é diferente do vapor de uma
chaleira, que é diferente da chuva, que é diferente da correnteza de um rio. No
entanto, o pensamento mostra que se trata sempre de um mesmo elemento (a água),
passando por diferentes estados e formas (líquido, sólido, gasoso), por causas
naturais diferentes (condensação, liquefação, evaporação).
Reunindo semelhanças, o pensamento conclui
que se trata de uma mesma coisa que aparece para nossos sentidos
de maneiras diferentes, e como se fossem coisas diferentes. O pensamento
generaliza porque abstrai (isto é, separa e reúne os traços semelhantes), ou
seja, realiza uma síntese.
E o contrário também ocorre. Muitas vezes
nossos órgãos dos sentidos nos fazem perceber coisas diferentes como se fossem
a mesma coisa, e o pensamento demonstrará que se trata de uma coisa
diferente sob a aparência da semelhança.
No ano de 1992, no Brasil, os jovens
estudantes pintaram a cara com as cores da bandeira nacional e saíram às ruas
para exigir o impedimento do presidente da República.
Logo depois, os candidatos a prefeituras
municipais contrataram jovens para aparecer na televisão com a cara pintada,
defendendo tais candidaturas. A seguir, as Forças Armadas brasileiras, para
persuadir jovens a servi-las, contrataram jovens caras-pintadas para aparecer
como soldados, marinheiros e aviadores. Ao mesmo tempo, várias empresas,
pretendendo vender seus produtos aos jovens, contrataram artistas jovens para,
de cara pintada, fazer a propaganda de seus produtos.
Aparentemente, teríamos sempre a mesma coisa
- os jovens rebeldes e conscientes, de cara pintada, símbolo da esperança do
País. No entanto, o pensamento pode mostrar que, sob a aparência da semelhança
percebida, estão diferenças, pois os primeiros caras-pintadas fizeram um
movimento político espontâneo, os segundos fizeram propaganda política para um
candidato (e receberam para isso), os terceiros tentaram ajudar as Forças
Armadas a aparecer como divertidas e juvenis, e os últimos, mediante
remuneração, estavam transferindo para produtos industriais (roupas, calçados,
vídeos, margarinas, discos, iogurtes) um símbolo político inteiramente
despolitizado e sem nenhuma relação com sua origem.
Separando as diferenças, o pensamento
realiza, nesse caso, uma análise.
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