Ignorância e verdade A verdade como um valor
Convite à Filosofia
De Marilena Chaui
Ed. Ática, São Paulo, 2000.
De Marilena Chaui
Ed. Ática, São Paulo, 2000.
Unidade 3
A verdade
A verdade
Capítulo 1
Ignorância e verdade
Ignorância e verdade
A
verdade como um valor
“Não se aprende Filosofia, mas a filosofar”,
já disse Kant. A Filosofia não é um conjunto de idéias e de sistemas que
possamos apreender automaticamente, não é um passeio turístico pelas paisagens
intelectuais, mas uma decisão ou deliberação orientada por um valor: a verdade.
É o desejo do verdadeiro que move a Filosofia e suscita filosofias.
Afirmar que a verdade é um valor significa: o
verdadeiro confere às coisas, aos seres humanos, ao mundo um sentido que não
teriam se fossem considerados indiferentes à verdade e à falsidade.
Ignorância,
incerteza e insegurança
Ignorar é não saber alguma coisa. A
ignorância pode ser tão profunda que sequer a percebemos ou a sentimos, isto é,
não sabemos que não sabemos, não sabemos que ignoramos. Em geral, o estado de
ignorância se mantém em nós enquanto as crenças e opiniões que possuímos para
viver e agir no mundo se conservam como eficazes e úteis, de modo que não temos
nenhum motivo para duvidar delas, nenhum motivo para desconfiar delas e,
conseqüentemente, achamos que sabemos tudo o que há para saber.
A incerteza é diferente da ignorância porque,
na incerteza, descobrimos que somos ignorantes, que nossas crenças e opiniões
parecem não dar conta da realidade, que há falhas naquilo em que acreditamos e
que, durante muito tempo, nos serviu como referência para pensar e agir. Na
incerteza não sabemos o que pensar, o que dizer ou o que fazer em certas
situações ou diante de certas coisas, pessoas, fatos, etc. Temos dúvidas,
ficamos cheios de perplexidade e somos tomados pela insegurança.
Outras vezes, estamos confiantes e seguros e,
de repente, vemos ou ouvimos alguma coisa que nos enche de espanto e de
admiração, não sabemos o que pensar ou o que fazer com a novidade do que vimos
ou ouvimos porque as crenças, opiniões e idéias que possuímos não dão conta do
novo. O espanto e a admiração, assim como antes a dúvida e a perplexidade, nos
fazem querer saber o que não sabemos, nos fazem querer sair do estado de
insegurança ou de encantamento, nos fazem perceber nossa ignorância e criam o
desejo de superar a incerteza.
Quando isso acontece, estamos na disposição
de espírito chamada busca da verdade.
O desejo da verdade aparece muito cedo nos
seres humanos como desejo de confiar nas coisas e nas pessoas, isto é, de
acreditar que as coisas são exatamente tais como as percebemos e o que as
pessoas nos dizem é digno de confiança e crédito. Ao mesmo tempo, nossa vida
cotidiana é feita de pequenas e grandes decepções e, por isso, desde cedo,
vemos as crianças perguntarem aos adultos se tal ou qual coisa “é de verdade ou
é de mentira”.
Quando uma criança ouve uma história, inventa
uma brincadeira ou um brinquedo, quando joga, vê um filme ou uma peça teatral,
está sempre atenta para saber se “é de verdade ou de mentira”, está sempre
atenta para a diferença entre o “de mentira” e a mentira propriamente dita,
isto é, para a diferença entre brincar, jogar, fingir e faltar à confiança.
Quando uma criança brinca, joga e finge, está
criando um outro mundo, mais rico e mais belo, mais cheio de possibilidades e
invenções do que o mundo onde, de fato, vive. Mas sabe, mesmo que não formule
explicitamente tal saber, que há uma diferença entre imaginação e percepção,
ainda que, no caso infantil, essa diferença seja muito tênue, muito leve, quase
imperceptível – tanto assim, que a criança acredita em mundos e seres
maravilhosos como parte do mundo real de sua vida.
Por isso mesmo, a criança é muito sensível à
mentira dos adultos, pois a mentira é diferente do “de mentira”, isto é, a
mentira é diferente da imaginação e a criança se sente ferida, magoada,
angustiada quando o adulto lhe diz uma mentira, porque, ao fazê-lo, quebra a
relação de confiança e a segurança infantis.
Quando crianças, estamos sujeitos a duas
decepções: a de que os seres, as coisas, os mundos maravilhosos não existem “de
verdade” e a de que os adultos podem dizer-nos falsidades e nos enganar. Essa dupla
decepção pode acarretar dois resultados opostos: ou a criança se recusa a sair
do mundo imaginário e sofre com a realidade como alguma coisa ruim e hostil a
ela; ou, dolorosamente, aceita a distinção, mas também se torna muito atenta e
desconfiada diante da palavra dos adultos. Nesse segundo caso, a criança também
se coloca na disposição da busca da verdade.
Nessa busca, a criança pode desejar um mundo
melhor e mais belo que aquele em que vive e encontrar a verdade nas obras de
arte, desejando ser artista também. Ou pode desejar saber como e por que o
mundo em que vive é tal como é e se ele poderia ser diferente ou melhor do que
é. Nesse caso, é despertado nela o desejo de conhecimento intelectual e o da
ação transformadora.
A criança não se decepciona nem se desilude
com o “faz-de-conta” porque sabe que é um “faz-de-conta”. Ela se decepciona ou
se desilude quando descobre que querem que acredite como sendo “de verdade”
alguma coisa que ela sabe ou que ela supunha que fosse “de faz-de-conta”, isto
é, decepciona-se e desilude-se quando descobre a mentira. Os jovens se
decepcionam e se desiludem quando descobrem que o que lhes foi ensinado e lhes
foi exigido oculta a realidade, reprime sua liberdade, diminui sua capacidade
de compreensão e de ação. Os adultos se desiludem ou se decepcionam quando
enfrentam situações para as quais o saber adquirido, as opiniões estabelecidas
e as crenças enraizadas em suas consciências não são suficientes para que
compreendam o que se passa nem para que possam agir ou fazer alguma coisa.
Assim, seja na criança, seja nos jovens ou
nos adultos, a busca da verdade está sempre ligada a uma decepção, a uma
desilusão, a uma dúvida, a uma perplexidade, a uma insegurança ou, então, a um
espanto e uma admiração diante de algo novo e insólito.
Dificuldades
para a busca da verdade
Em nossa sociedade, é muito difícil despertar
nas pessoas o desejo de buscar a verdade. Pode parecer paradoxal que assim
seja, pois parecemos viver numa sociedade que acredita nas ciências, que luta
por escolas, que recebe durante 24 horas diárias informações vindas de jornais,
rádios e televisões, que possui editoras, livrarias, bibliotecas, museus, salas
de cinema e de teatro, vídeos, fotografias e computadores.
Ora, é justamente essa enorme quantidade de
veículos e formas de informação que acaba tornando tão difícil a busca da
verdade, pois todo mundo acredita que está recebendo, de modos variados e
diferentes, informações científicas, filosóficas, políticas, artísticas e que
tais informações são verdadeiras, sobretudo porque tal quantidade informativa
ultrapassa a experiência vivida pelas pessoas, que, por isso, não têm meios
para avaliar o que recebem.
Bastaria, no entanto, que uma mesma pessoa,
durante uma semana, lesse de manhã quatro jornais diferentes e ouvisse três
noticiários de rádio diferentes; à tarde, freqüentasse duas escolas diferentes,
onde os mesmos cursos estariam sendo ministrados; e, à noite, visse os
noticiários de quatro canais diferentes de televisão, para que, comparando
todas as informações recebidas, descobrisse que elas “não batem” umas com as
outras, que há vários “mundos” e várias “sociedades” diferentes, dependendo da
fonte de informação.
Uma experiência como essa criaria
perplexidade, dúvida e incerteza. Mas as pessoas não fazem ou não podem fazer
tal experiência e por isso não percebem que, em lugar de receber informações,
estão sendo desinformadas. E, sobretudo, como há outras pessoas (o jornalista,
o radialista, o professor, o médico, o policial, o repórter) dizendo a elas o
que devem saber, o que podem saber, o que podem e devem fazer ou sentir,
confiando na palavra desses “emissores de mensagens”, as pessoas se sentem
seguras e confiantes, e não há incerteza porque há ignorância.
Uma outra dificuldade para fazer surgir o
desejo da busca da verdade, em nossa sociedade, vem da propaganda.
A propaganda trata todas as pessoas –
crianças, jovens, adultos, idosos – como crianças extremamente ingênuas e
crédulas. O mundo é sempre um mundo “de faz-de-conta”: nele a margarina fresca
faz a família bonita, alegre, unida e feliz; o automóvel faz o homem confiante,
inteligente, belo, sedutor, bem-sucedido nos negócios, cheio de namoradas
lindas; o desodorante faz a moça bonita, atraente, bem empregada, bem vestida,
com um belo apartamento e lindos namorados; o cigarro leva as pessoas para
belíssimas paisagens exóticas, cheias de aventura e de negócios coroados de
sucesso que terminam com lindos jantares à luz de velas.
A propaganda nunca vende um produto dizendo o
que ele é e para que serve. Ela vende o produto rodeando-o de magias, belezas,
dando-lhe qualidades que são de outras coisas (a criança saudável, o jovem
bonito, o adulto inteligente, o idoso feliz, a casa agradável, etc.),
produzindo um eterno “faz-de-conta”.
Uma outra dificuldade para o desejo da busca
da verdade vem da atitude dos políticos nos quais as pessoas confiam, ouvindo
seus programas, suas propostas, seus projetos enfim, dando-lhes o voto e
vendo-se, depois, ludibriadas, não só porque não são cumpridas as promessas,
mas também porque há corrupção, mau uso do dinheiro público, crescimento das
desigualdades e das injustiças, da miséria e da violência.
Em vista disso, a tendência das pessoas é
julgar que é impossível a verdade na política, passando a desconfiar do valor e
da necessidade da democracia e aceitando “vender” seu voto por alguma vantagem
imediata e pessoal, ou caem na descrença e no ceticismo.
No entanto, essas dificuldades podem ter o
efeito oposto, isto é, suscitar em muitas pessoas dúvidas, incertezas,
desconfianças e desilusões que as façam desejar conhecer a realidade, a
sociedade, a ciência, as artes, a política. Muitos começam a não aceitar o que
lhes é dito. Muitos começam a não acreditar no que lhes é mostrado. E, como
Sócrates em Atenas, começam a fazer perguntas, a indagar sobre fatos e pessoas,
coisas e situações, a exigir explicações, a exigir liberdade de pensamento e de
conhecimento.
Para essas pessoas, surge o desejo e a
necessidade da busca da verdade. Essa busca nasce não só da dúvida e da
incerteza, nasce também da ação deliberada contra os preconceitos, contra as
idéias e as opiniões estabelecidas, contra crenças que paralisam a capacidade
de pensar e de agir livremente.
Podemos, dessa maneira, distinguir dois tipos
de busca da verdade. O primeiro é o que nasce da decepção, da incerteza e da
insegurança e, por si mesmo, exige que saiamos de tal situação readquirindo
certezas. O segundo é o que nasce da deliberação ou decisão de
não aceitar as certezas e crenças estabelecidas, de ir além delas e de encontrar
explicações, interpretações e significados para a realidade que nos cerca. Esse
segundo tipo é a busca da verdade na atitude filosófica.
Podemos oferecer dois exemplos célebres dessa
busca filosófica. Já falamos do primeiro: Sócrates andando pelas ruas e praças
de Atenas indagando aos atenienses o que eram as coisas e idéias em que
acreditavam. O segundo exemplo é o do filósofo Descartes.
Descartes começa sua obra filosófica fazendo
um balanço de tudo o que sabia: o que lhe fora ensinado pelos preceptores e
professores, pelos livros, pelas viagens, pelo convívio com outras pessoas. Ao
final, conclui que tudo quanto aprendera, tudo quanto sabia e tudo quanto
conhecera pela experiência era duvidoso e incerto. Decide, então, não aceitar
nenhum desses conhecimentos, a menos que pudesse provar racionalmente que eram
certos e dignos de confiança. Para isso, submete todos os conhecimentos
existentes em suas época e os seus próprios a um exame crítico conhecido como dúvida
metódica, declarando que só aceitará um conhecimento, uma idéia, um fato ou
uma opinião se, passados pelo crivo da dúvida, revelarem-se indubitáveis para o
pensamento puro. Ele os submete à análise, à dedução, à indução, ao raciocínio
e conclui que, até o momento, há uma única verdade indubitável que poderá ser
aceita e que deverá ser o ponto de partida para a reconstrução do edifício do
saber.
Essa única verdade é: “Penso, logo existo”,
pois, se eu duvidar de que estou pensando, ainda estou pensando, visto que
duvidar é uma maneira de pensar. A consciência do pensamento aparece, assim,
como a primeira verdade indubitável que será o alicerce para todos os
conhecimentos futuros.
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