Buscando a verdade Dogmatismo e busca da verdade

Convite à Filosofia
De Marilena Chaui
Ed. Ática, São Paulo, 2000.
Unidade 3
A verdade
Capítulo 2
Buscando a verdade
Dogmatismo e busca da verdade
Quando prestamos atenção em Sócrates ou Descartes, notamos que ambos, por motivos diferentes e usando procedimentos diferentes, fazem uma mesma coisa, isto é, desconfiam das opiniões e crenças estabelecidas em suas sociedades, mas também desconfiam das suas próprias idéias e opiniões. Do que desconfiam eles, afinal? Desconfiam do dogmatismo.
O que é dogmatismo?
Dogmatismo é uma atitude muito natural e muito espontânea que temos, desde muito crianças. É nossa crença de que o mundo existe e que é exatamente tal como o percebemos. Temos essa crença porque somos seres práticos, isto é, nos relacionamos com a realidade como um conjunto de coisas, fatos e pessoas que são úteis ou inúteis para nossa sobrevivência.
Os seres humanos, porque são seres culturais, trabalham. O trabalho é uma ação pela qual modificamos as coisas e a realidade de modo a conseguir nossa preservação na existência. Constroem casas, fabricam vestuário e utensílios, produzem objetos técnicos e de consumo, inventam meios de transporte, de comunicação e de informação. Através da prática ou do trabalho e da técnica, os seres humanos organizam-se social e politicamente, criam instituições sociais (família, escola, agricultura, comércio, indústria, relações entre grupos e classes, etc.) e instituições políticas (o Estado, o poder executivo, legislativo e judiciário, as forças militares profissionais, os tribunais e as leis).
Essas práticas só são possíveis porque acreditamos que o mundo existe, que é tal como o percebemos e tal como nos ensinaram que ele é, que pode ser modificado ou conservado por nós, que é explicado pelas religiões e pelas ciências, que é representado pelas artes. Acreditamos que os outros seres humanos também são racionais, pois, graças à linguagem, trocamos idéias e opiniões, pensamos de modo muito parecido e a escola e os meios de comunicação garantem a manutenção dessas semelhanças.
Na atitude dogmática, tomamos o mundo como já dado, já feito, já pensado, já transformado. A realidade natural, social, política e cultural forma uma espécie de moldura de um quadro em cujo interior nos instalamos e onde existimos. Mesmo quando acontece algo excepcional ou extraordinário (uma catástrofe, o aparecimento de um objeto inteiramente novo e desconhecido), nossa tendência natural e dogmática é a de reduzir o excepcional e o extraordinário aos padrões do que já conhecemos e já sabemos. Mesmo quando descobrimos que alguma coisa é diferente do que havíamos suposto, essa descoberta não abala nossa crença e nossa confiança na realidade, nem nossa familiaridade com ela.
O mundo é como a novela de televisão: muita coisa acontece, mas, afinal, nada acontece, pois quando a novela termina, os bons foram recompensados, os maus foram punidos, os pobres bons ficaram ricos, os ricos maus ficaram pobres, a mocinha casou com o mocinho certo, a família boa se refez e a família má se desfez. Em outras palavras, os acontecimentos da novela servem apenas para confirmar e reforçar o que já sabíamos e o que já esperávamos. Tudo se mantém numa atmosfera ou num clima de familiaridade, de segurança e sossego.
Na atitude dogmática ou natural, aceitamos sem nenhum problema que há uma realidade exterior a nós e que, embora externa e diferente de nós, pode ser conhecida e tecnicamente transformada por nós. Achamos que o espaço existe, que nele as coisas estão como num receptáculo; achamos que o tempo também existe e que nele as coisas e nós próprios estamos submetidos à sucessão dos instantes.
Dogmatismo e estranhamento
Escutemos, porém, por um momento, a indagação de santo Agostinho, em suas Confissões:
O que é o tempo? Tentemos fornecer uma explicação fácil e breve. O que há de mais familiar e mais conhecido do que o tempo? Mas, o que é o tempo? Quando quero explicá-lo, não encontro explicação. Se eu disser que o tempo é a passagem do passado para o presente e do presente para o futuro, terei que perguntar: Como pode o tempo passar? Como sei que ele passa? O que é um tempo passado? Onde ele está? O que é um tempo futuro? Onde ele está? Se o passado é o que eu, do presente, recordo, e o futuro é o que eu, do presente, espero, então não seria mais correto dizer que o tempo é apenas o presente? Mas, quanto dura um presente? Quando acabo de colocar o ‘r’ no verbo ‘colocar’, este ‘r’ é ainda presente ou já é passado? A palavra que estou pensando em escrever a seguir, é presente ou é futuro? O que é o tempo, afinal? E a eternidade?
As coisas são mesmo tais como me aparecem? Estão no espaço? Mas, o que é o espaço? Se eu disser que o espaço é feito de comprimento, altura e largura, onde poderei colocar a profundidade, sem a qual não podemos ver, não podemos enxergar nada? Mas a profundidade, que me permite ver as coisas espaciais, é justamente aquilo que não vejo e que não posso ver, se eu quiser olhar as coisas. A profundidade é ou não espacial? Se for espacial, por que não a vejo no espaço? Se não for espacial, como pode ser a condição para que eu veja as coisas no espaço?
Acompanhemos agora os versos do poeta Mário de Andrade, escritos no poema “Lira Paulistana”:
Garoa do meu São Paulo
Um negro vem vindo, é branco!
Só bem perto fica negro,
Passa e torna a ficar branco.
Meu São Paulo da garoa,
- Londres das neblinas frias -
Um pobre vem vindo, é rico!
Só bem perto fica pobre,
Passa e torna a ficar rico.
Esses versos, nos quais a garoa de São Paulo se parece com a neblina de Londres, isto é, com um véu denso de ar úmido, dizem que não conseguimos ver a realidade: o negro, de longe, é branco, o pobre, de longe, é rico; só muito de perto, sem o véu da garoa, o negro é negro e o pobre é pobre. Mas, apesar de vê-los de perto tais como são, de longe voltam a ser o que não são.
O poeta exprime um dos problemas que mais fascinam a Filosofia: Como a ilusão é possível? Como podemos ver o que não é? Mas, conseqüentemente, como a verdade é possível? Como podemos ver o que é, tal como é? Qual é a “garoa” que se interpõe entre o nosso pensamento e a realidade? Qual é a “garoa” que se interpõe entre nosso olhar e as coisas?
A atitude dogmática ou natural se rompe quando somos capazes de uma atitude de estranhamento diante das coisas que nos pareciam familiares. Dois exemplos podem ilustrar essa capacidade de estranhamento, ambos da escritora Clarice Lispector em seu livro A descoberta do mundo. O primeiro tem como título “Mais do que um inseto”.
Custei um pouco a compreender o que estava vendo, de tão inesperado e sutil que era: estava vendo um inseto pousado, verde-claro, de pernas altas. Era uma ‘esperança’, o que sempre me disseram que é de bom augúrio. Depois a esperança começou a andar bem de leve sobre o colchão. Era verde transparente, com pernas que mantinham seu corpo plano alto e por assim dizer solto, um plano tão frágil quanto as próprias pernas que eram feitas apenas da cor da casca. Dentro do fiapo das pernas não havia nada dentro: o lado de dentro de uma superfície tão rasa já é a própria superfície. Parecia um raso desenho que tivesse saído do papel, verde e andasse… E andava com uma determinação de quem copiasse um traço que era invisível para mim… Mas onde estariam nele as glândulas de seu destino e as adrenalinas de seu seco verde interior? Pois era um ser oco, um enxerto de gravetos, simples atração eletiva de linhas verdes.
O outro se intitula “Atualidade do ovo e da galinha” e nele podemos ler o seguinte trecho:
Olho o ovo com um só olhar. Imediatamente percebo que não se pode estar vendo um ovo apenas: ver o ovo é sempre hoje; mal vejo o ovo e já se torna ter visto um ovo, o mesmo, há três milênios. No próprio instante de se ver o ovo ele é a lembrança de um ovo. Só vê o ovo quem já o tiver visto… Ver realmente o ovo é impossível: o ovo é supervisível como há sons supersônicos que o ouvido já não ouve. Ninguém é capaz de ver o ovo… O ovo é uma coisa suspensa. Nunca pousou. Quando pousa, não foi ele quem pousou, foi uma superfície que veio ficar embaixo do ovo… O ovo é uma exteriorização: ter uma casca é dar-se… O ovo expõe tudo.
À primeira vista, que há de mais banal ou familiar do que um inseto ou um ovo? No entanto, Clarice Lispector nos faz sentir admiração e estranhamento, como se jamais tivéssemos visto um inseto ou um ovo. Nas duas descrições maravilhadas, um ponto é comum: o inseto e o ovo têm a peculiaridade de serem superfícies nas quais não conseguimos distinguir ou separar o fora e o dentro, o exterior e o interior; a ‘esperança’ verde é como um traçado – letra, desenho – sobre a superfície do papel; o ovo é uma casca que expõe tudo.
No entanto, nesses dois seres sem profundidade, há um abismo misterioso: todo ovo é igual a todo ovo e por isso não temos como ver “um” ovo, embora ele esteja diante de nossos olhos; e o inseto ‘esperança’ é um oco, um vazio colorido (como um vazio pode ter cor?) ou uma cor sem corpo (como uma cor pode existir sem um corpo colorido?).
O sentido das palavras
A mesma estranheza pode ser encontrada num poema de Carlos Drummond, mas agora relativa à linguagem. Usamos todos os dias as palavras como instrumentos dóceis e disponíveis, como se sempre estivessem estado prontas para nós, com seu sentido claro e útil. O poeta, porém, aconselha:
Penetra surdamente no reino das palavras.

Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível, que lhe deres:
Trouxeste a chave?
Se as palavras tivessem sempre um sentido óbvio e único, não haveria literatura, não haveria mal-entendido e controvérsia. Se as palavras tivessem sempre o mesmo sentido e se indicassem diretamente as coisas nomeadas, como seria possível a mentira? É por isso que o poeta Fernando Pessoa, em versos famosos, escreveu:
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor,
A dor que deveras sente.
O poeta é um “finge-dor” e seu fingimento – isto é, sua criação artística – é tão profundo e tão constitutivo de seu ser de poeta, que ele finge – isto é, transforma em poema, em obra de arte – a dor que deveras ou de verdade sente. A palavra tem esse poder misterioso de transformar o que não existe em realidade (o poeta finge) e de dar a aparência de irrealidade ao que realmente existe (o poeta finge a dor que realmente sente).
Na tragédia Otelo, de Shakespeare, o mouro Otelo, apaixonado perdidamente por sua jovem esposa, Desdêmona, acaba por assassiná-la porque foi convencido por Iago de que ela o traía. Iago, invejoso dos cargos que Otelo daria a um outro membro de sua corte, inventou a traição de Desdêmona, mentiu para Otelo e este, tomando a mentira pela verdade, destruiu a pessoa amada, que morreu afirmando sua inocência. Para construir a mentira, Iago despertou em Otelo o ciúme, caluniando Desdêmona. Usou vários estratagemas, mas sobretudo usou a linguagem, isto é, palavras falsas que envenenaram o espírito de Otelo.
Como é possível que as palavras ou que a linguagem tenham o poder para tornar o verdadeiro, falso, e fazer do falso, verdadeiro? Como seria uma sociedade na qual a mentira fosse a regra e, portanto, na qual não conseguíssemos nenhuma informação, por menor que fosse, que tivesse alguma veracidade? Como faríamos para sobreviver, se tudo o que nos fosse dito fosse mentira? Perguntas e respostas seriam inúteis, a desconfiança e a decepção seriam as únicas formas de relação entre as pessoas e tal sociedade seria a imagem do Inferno.
Essa sociedade infernal é criada pelo escritor George Orwell, no romance 1984. Orwell descreve uma sociedade totalitária que controla todos os gestos, atos, pensamentos e palavras de seus membros. Estes, todos os dias, entram num cubículo onde uma teletela exibe o rosto do grande chefe, o Grande Irmão, que, pela mentira e pelo medo, domina o espírito da população, falando diariamente com cada um.
Nessa sociedade, é instituído o Ministério da Verdade, no qual, todos os dias, os fatos reais são modificados em narrativas ou relatos falsos, são omitidos, são apagados da História e da memória, como se nunca tivessem existido. O Ministério da Verdade cria a mentira como instituição social. O poder cria a Novi-Língua, isto é, inventa palavras e destrói outras; as inventadas são as que estão a serviço da mentira institucionalizada e as destruídas são as que poderiam fazer aparecer a mentira. A negação da verdade é, assim, usada para manter uma sociedade inteira enganada e submissa.
Quando vemos o modo como os meios de comunicação funcionam, podemos perguntar se 1984 é uma simples ficção ou se realmente existe, sem que o saibamos.
Como é possível que a linguagem tenha tamanho poder mistificador? E, ao mesmo tempo, como é possível que, em todas as culturas, na relação entre os homens e a divindade, entre o profano e o sagrado, o papel fundamental de revelação da verdade seja sempre dado à linguagem, à palavra sagrada e verdadeira que os deuses dizem aos homens? Como uma mesma coisa – a palavra, o discurso – pode ser origem, ao mesmo tempo, da verdade e da falsidade? Como a linguagem pode mostrar e esconder?
Como essa duplicidade misteriosa da linguagem pode servir para manter o dogmatismo? Mas também, como pode despertar o desejo de verdade?
Verdades reveladas e verdades alcançadas
A atitude dogmática é conservadora, isto é, sente receio das novidades, do inesperado, do desconhecido e de tudo o que possa desequilibrar as crenças e opiniões já constituídas. Esse conservadorismo se transforma em preconceito, isto é, em idéias preconcebidas que impedem até mesmo o contato com tudo quanto possa pôr em perigo o já sabido, o já dito e o já feito.
O conservadorismo pode aumentar ainda mais quando o dogmatismo estiver convencido de que várias de suas opiniões e crenças vieram de uma fonte sagrada, de uma revelação divina incontestável e incontestada, de tal modo que situações que tornem problemáticas tais crenças são afastadas como inaceitáveis e perigosas; aqueles que ousam enfrentar essas crenças e opiniões são tidos como criminosos, blasfemadores e heréticos.
No romance de Umberto Eco, O nome da rosa, uma série de assassinatos misteriosos acontecem e todos os mortos trazem um mesmo sinal, a língua enegrecida e dois dedos da mão direita – o polegar e o indicador – também enegrecidos. O monge Guilherme de Baskerville descobre que todos os assassinados eram frades encarregados de copiar e ilustrar manuscritos de uma biblioteca; todos eles haviam manuseado um mesmo livro no qual havia algo que funcionava como veneno (ao molhar os dedos com saliva para virar as páginas do livro, os copistas eram envenenados).
Guilherme descobre que o livro era uma obra perdida de Aristóteles sobre a comédia e a importância do riso para a vida humana. Descobre também que um dos monges, Jorge de Burgos, guardião da biblioteca, julgara que o riso é contrário à vontade de Deus, um pecado que merece a morte, pois viemos ao mundo para sofrer a culpa original de Adão. Por isso, assassinou por envenenamento os copistas que ousaram ler o livro e, ao final, queima a biblioteca para que o livro seja destruído.
Nesse romance, duas idéias acerca da verdade se enfrentam: a verdade humana, que estaria contida no livro do filósofo Aristóteles, e a verdade divina, que o bibliotecário julga estar na proibição do riso e da alegria para os humanos pecadores, que vieram à Terra para o sofrimento. Em nome dessa segunda verdade, Jorge de Burgos matou outros seres humanos e queimou livros escritos por seres humanos, pois, para ele, uma verdade revelada por Deus é a única verdade e tudo quanto querem e pensam os humanos, se for contrário à verdade divina, é erro e falsidade, crime e blasfêmia.
Esse conflito entre verdades reveladas e verdades alcançadas pelos humanos através do exercício da inteligência e da razão tem sido também uma questão que preocupa a Filosofia, desde o surgimento do Cristianismo. Podemos conhecer as verdades divinas? Se não pudermos conhecê-las, seremos culpados? Mas, como seríamos culpados por não conhecer aquilo que nosso intelecto, por ser pequeno e menor do que o de Deus, não teria forças para alcançar?
As três concepções da verdade
Os vários exemplos que mencionamos neste capítulo indicam concepções diferentes da verdade.
No caso de Mário de Andrade e Clarice Lispector, o problema da verdade está ligado ao ver, ao perceber. No caso de Fernando Pessoa, Carlos Drummond, Shakespeare e Orwell, a verdade está ligada ao dizer, ao falar, às palavras. No caso de Umberto Eco, a verdade está ligada ao crer, ao acreditar.
Para a atitude natural ou dogmática, o verdadeiro é o que funciona e não surpreende. É – como vimos – o já sabido, o já dito e o já feito. Verdade e realidade parecem ser idênticas e quando essa identidade se desfaz ou se quebra, surge a incerteza que busca readquirir certezas.

Para a atitude crítica ou filosófica, a verdade nasce da decisão e da deliberação de encontrá-la, da consciência da ignorância, do espanto, da admiração e do desejo de saber. Nessa busca, a Filosofia é herdeira de três grandes concepções da verdade: a do ver-perceber, a do falar-dizer e a do crer-confiar.

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