A Razão Os vários sentidos da palavra razão
Convite à Filosofia
De Marilena Chaui
Ed. Ática, São Paulo, 2000.
De Marilena Chaui
Ed. Ática, São Paulo, 2000.
Unidade 2
A Razão
A Razão
Capítulo 1
A Razão
A Razão
Os
vários sentidos da palavra razão
Nos capítulos precedentes, insistimos muito
na afirmação de que a Filosofia se realiza como conhecimento racional da realidade
natural e cultural, das coisas e dos seres humanos. Dissemos que ela confia na
razão e que, hoje, ela também desconfia da razão. Mas, até agora, não dissemos
o que é a razão, apesar de ser ela tão antiga quanto a Filosofia.
Em nossa vida cotidiana usamos a palavra
razão em muitos sentidos. Dizemos, por exemplo, “eu estou com a razão”, ou “ele
não tem razão”, para significar que nos sentimos seguros de alguma coisa ou que
sabemos com certeza alguma coisa. Também dizemos que, num momento de fúria ou
de desespero, “alguém perde a razão”, como se a razão fosse alguma coisa que se
pode ter ou não ter, possuir e perder, ou recuperar, como na frase: “Agora ela
está lúcida, recuperou a razão”.
Falamos também frases como: “Se você me
disser suas razões, sou capaz de fazer o que você me pede”, querendo dizer com
isso que queremos ouvir os motivos que alguém tem para querer ou fazer alguma
coisa. Fazemos perguntas como: “Qual a razão disso?”, querendo saber qual a
causa de alguma coisa e, nesse caso, a razão parece ser alguma propriedade que
as próprias coisas teriam, já que teriam uma causa.
Assim, usamos “razão” para nos referirmos a
“motivos” de alguém, e também para nos referirmos a “causas” de alguma coisa,
de modo que tanto nós quanto as coisas parecemos dotados de “razão”, mas em
sentido diferente.
Esses poucos exemplos já nos mostram quantos
sentidos diferentes a palavra razão possui: certeza, lucidez, motivo, causa. E
todos esses sentidos encontram-se presentes na Filosofia.
Por identificar razão e certeza, a Filosofia
afirma que a verdade é racional; por identificar razão e lucidez (não ficar ou
não estar louco), a Filosofia chama nossa razão de luz e luz natural; por
identificar razão e motivo, por considerar que sempre agimos e falamos movidos
por motivos, a Filosofia afirma que somos seres racionais e que nossa vontade é
racional; por identificar razão e causa e por julgar que a realidade opera de
acordo com relações causais, a Filosofia afirma que a realidade é racional.
É muito conhecida a célebre frase de Pascal,
filósofo francês do século XVII: “O coração tem razões que a razão desconhece”.
Nessa frase, as palavras razões e razão não têm o mesmo
significado, indicando coisas diversas. Razões são os motivos do
coração, enquanto razão é algo diferente de coração; este é o
nome que damos para as emoções e paixões, enquanto “razão” é o nome que damos à
consciência intelectual e moral.
Ao dizer que o coração tem suas próprias
razões, Pascal está afirmando que as emoções, os sentimentos ou as paixões são causas
de muito do que fazemos, dizemos, queremos e pensamos. Ao dizer que a razão
desconhece “as razões do coração”, Pascal está afirmando que a consciência
intelectual e moral é diferente das paixões e dos sentimentos e que ela é capaz
de uma atividade própria não motivada e causada pelas emoções, mas possuindo
seus motivos ou suas próprias razões.
Assim, a frase de Pascal pode ser traduzida
da seguinte maneira: Nossa vida emocional possui causas e motivos (as “razões
do coração”), que são as paixões ou os sentimentos, e é diferente de nossa
atividade consciente, seja como atividade intelectual, seja como atividade
moral.
A consciência é a razão. Coração e razão,
paixão e consciência intelectual ou moral são diferentes. Se alguém “perde a
razão” é porque está sendo arrastado pelas “razões do coração”. Se alguém
“recupera a razão” é porque o conhecimento intelectual e a consciência moral se
tornaram mais fortes do que as paixões. A razão, enquanto consciência moral, é
a vontade racional livre que não se deixa dominar pelos impulsos passionais,
mas realiza as ações morais como atos de virtude e de dever, ditados pela
inteligência ou pelo intelecto.
Além da frase de Pascal, também ouvimos
outras que elogiam as ciências, dizendo que elas manifestam o “progresso da
razão”. Aqui, a razão é colocada como capacidade puramente intelectual para
conseguir o conhecimento verdadeiro da Natureza, da sociedade, da História e
isto é considerado algo bom, positivo, um “progresso”.
Por ser considerado um “progresso”, o conhecimento
científico é visto como se realizando no tempo e como dotado de continuidade,
de tal modo que a razão é concebida como temporal também, isto é, como capaz de
aumentar seus conteúdos e suas capacidades através dos tempos.
Algumas vezes ouvimos um professor dizer a
outro: “Fulano trouxe um trabalho irracional; era um caos, uma confusão.
Incompreensível. Já o trabalho de beltrano era uma beleza: claro,
compreensível, racional”. Aqui, a razão, ou racional, significa clareza das
idéias, ordem, resultado de esforço intelectual ou da inteligência, seguindo
normas e regras de pensamento e de linguagem.
Todos esses sentidos constituem a nossa idéia
de razão. Nós a consideramos a consciência moral que observa as paixões,
orienta a vontade e oferece finalidades éticas para a ação. Nós a vemos como
atividade intelectual de conhecimento da realidade natural, social,
psicológica, histórica. Nós a concebemos segundo o ideal da clareza, da
ordenação e do rigor e precisão dos pensamentos e das palavras.
Para muitos filósofos, porém, a razão não é
apenas a capacidade moral e intelectual dos seres humanos, mas também uma
propriedade ou qualidade primordial das próprias coisas, existindo na própria
realidade. Para esses filósofos, nossa razão pode conhecer a realidade (Natureza,
sociedade, História) porque ela é racional em si mesma.
Fala-se, portanto, em razão objetiva
(a realidade é racional em si mesma) e em razão subjetiva (a razão é uma
capacidade intelectual e moral dos seres humanos). A razão objetiva é a
afirmação de que o objeto do conhecimento ou a realidade é racional; a
razão subjetiva é a afirmação de que o sujeito do conhecimento e da ação
é racional. Para muitos filósofos, a Filosofia é o momento do encontro, do
acordo e da harmonia entre as duas razões ou racionalidades.
Origem
da palavra razão
Na cultura da chamada sociedade ocidental, a
palavra razão origina-se de duas fontes: a palavra latina ratio e
a palavra grega logos. Essas duas palavras são substantivos derivados de
dois verbos que têm um sentido muito parecido em latim e em grego.
Logos vem do verbo legein, que quer dizer:
contar, reunir, juntar, calcular. Ratio vem do verbo reor, que
quer dizer: contar, reunir, medir, juntar, separar, calcular.
Que fazemos quando medimos, juntamos,
separamos, contamos e calculamos? Pensamos de modo ordenado. E de que meios
usamos para essas ações? Usamos palavras (mesmo quando usamos números estamos
usando palavras, sobretudo os gregos e os romanos, que usavam letras para
indicar números).
Por isso, logos, ratio ou razão
significam pensar e falar ordenadamente, com medida e proporção, com clareza e
de modo compreensível para outros. Assim, na origem, razão é a capacidade
intelectual para pensar e exprimir-se correta e claramente, para pensar e dizer
as coisas tais como são. A razão é uma maneira de organizar a realidade pela
qual esta se torna compreensível. É, também, a confiança de que podemos ordenar
e organizar as coisas porque são organizáveis, ordenáveis, compreensíveis nelas
mesmas e por elas mesmas, isto é, as próprias coisas são racionais.
Desde o começo da Filosofia, a origem da
palavra razão fez com que ela fosse considerada oposta a quatro outras
atitudes mentais:
1. ao conhecimento ilusório, isto é, ao
conhecimento da mera aparência das coisas que não alcança a realidade ou a
verdade delas; para a razão, a ilusão provém de nossos costumes, de nossos
preconceitos, da aceitação imediata das coisas tais como aparecem e tais como
parecem ser. As ilusões criam as opiniões que variam de pessoa para pessoa e de
sociedade para sociedade. A razão se opõe à mera opinião;
2. às emoções, aos sentimentos, às paixões, que
são cegas, caóticas, desordenadas, contrárias umas às outras, ora dizendo “sim”
a alguma coisa, ora dizendo “não” a essa mesma coisa, como se não soubéssemos o
que queremos e o que as coisas são. A razão é vista como atividade ou ação
(intelectual e da vontade) oposta à paixão ou à passividade emocional;
3. à crença religiosa, pois, nesta, a verdade
nos é dada pela fé numa revelação divina, não dependendo do trabalho de
conhecimento realizado pela nossa inteligência ou pelo nosso intelecto. A razão
é oposta à revelação e por isso os filósofos cristãos distinguem a luz natural
- a razão - da luz sobrenatural - a revelação;
4. ao êxtase místico, no qual o espírito
mergulha nas profundezas do divino e participa dele, sem qualquer intervenção
do intelecto ou da inteligência, nem da vontade. Pelo contrário, o êxtase
místico exige um estado de abandono, de rompimento com a atividade intelectual
e com a vontade, um rompimento com o estado consciente, para entregar-se à
fruição do abismo infinito. A razão ou consciência se opõe à inconsciência do
êxtase.
Os
princípios racionais
Desde seus começos, a Filosofia considerou
que a razão opera seguindo certos princípios que ela própria estabelece e que
estão em concordância com a própria realidade, mesmo quando os empregamos sem conhecê-los
explicitamente. Ou seja, o conhecimento racional obedece a certas regras ou
leis fundamentais, que respeitamos até mesmo quando não conhecemos diretamente
quais são e o que são. Nós as respeitamos porque somos seres racionais e porque
são princípios que garantem que a realidade é racional.
Que princípios são esses? São eles:
Princípio da identidade, cujo enunciado pode
parecer surpreendente: “A é A” ou “O que é, é”. O princípio da
identidade é a condição do pensamento e sem ele não podemos pensar. Ele afirma
que uma coisa, seja ela qual for (um ser da Natureza, uma figura geométrica, um
ser humano, uma obra de arte, uma ação), só pode ser conhecida e pensada se for
percebida e conservada com sua identidade.
Por exemplo, depois que um matemático definir
o triângulo como figura de três lados e de três ângulos, não só nenhuma outra
figura que não tenha esse número de lados e de ângulos poderá ser chamada de
triângulo como também todos os teoremas e problemas que o matemático demonstrar
sobre o triângulo, só poderão ser demonstrados se, a cada vez que ele disser
“triângulo”, soubermos a qual ser ou a qual coisa ele está se referindo. O
princípio da identidade é a condição para que definamos as coisas e possamos conhecê-las
a partir de suas definições.
Princípio da não-contradição (também conhecido
como princípio da contradição), cujo enunciado é: “A é A e é
impossível que seja, ao mesmo tempo e na mesma relação, não-A”. Assim, é
impossível que a árvore que está diante de mim seja e não seja uma mangueira;
que o cachorrinho de dona Filomena seja e não seja branco; que o triângulo
tenha e não tenha três lados e três ângulos; que o homem seja e não seja
mortal; que o vermelho seja e não seja vermelho, etc.
Sem o princípio da não-contradição, o
princípio da identidade não poderia funcionar. O princípio da não-contradição
afirma que uma coisa ou uma idéia que se negam a si mesmas se autodestroem,
desaparecem, deixam de existir. Afirma, também, que as coisas e as idéias
contraditórias são impensáveis e impossíveis.
Princípio do terceiro-excluído, cujo enunciado é:
“Ou A é x ou é y e não há terceira possibilidade”. Por
exemplo: “Ou este homem é Sócrates ou não é Sócrates”; “Ou faremos a guerra ou
faremos a paz”. Este princípio define a decisão de um dilema - “ou isto ou
aquilo” - e exige que apenas uma das alternativas seja verdadeira. Mesmo quando
temos, por exemplo, um teste de múltipla escolha, escolhemos na verdade apenas
entre duas opções - “ou está certo ou está errado” - e não há terceira
possibilidade ou terceira alternativa, pois, entre várias escolhas possíveis,
só há realmente duas, a certa ou a errada.
Princípio da razão suficiente, que afirma que tudo
o que existe e tudo o que acontece tem uma razão (causa ou motivo) para existir
ou para acontecer, e que tal razão (causa ou motivo) pode ser conhecida pela
nossa razão. O princípio da razão suficiente costuma ser chamado de princípio
da causalidade para indicar que a razão afirma a existência de relações ou
conexões internas entre as coisas, entre fatos, ou entre ações e
acontecimentos.Pode ser enunciado da seguinte maneira: “Dado A,
necessariamente se dará B”. E também: “Dado B, necessariamente
houve A”.
Isso não significa que a razão não admita o
acaso ou ações e fatos acidentais, mas sim que ela procura, mesmo para o acaso
e para o acidente, uma causa. A diferença entre a causa, ou razão suficiente, e
a causa casual ou acidental está em que a primeira se realiza sempre, é
universal e necessária, enquanto a causa acidental ou casual só vale para
aquele caso particular, para aquela situação específica, não podendo ser
generalizada e ser considerada válida para todos os casos ou situações iguais
ou semelhantes, pois, justamente, o caso ou a situação são únicos.
A morte, por exemplo, é um efeito necessário
e universal (válido para todos os tempos e lugares) da guerra e a guerra é a
causa necessária e universal da morte de pessoas. Mas é imprevisível ou acidental
que esta ou aquela guerra aconteçam. Podem ou não podem acontecer. Nenhuma
causa universal exige que aconteçam. Mas, se uma guerra acontecer, terá
necessariamente como efeito mortes. Mas as causas dessa guerra são somente as
dessa guerra e de nenhuma outra.
Diferentemente desse caso, o princípio da
razão suficiente está vigorando plenamente quando, por exemplo, Galileu
demonstrou as leis universais do movimento dos corpos em queda livre, isto é,
no vácuo.
Pelo que foi exposto, podemos observar que os
princípios da razão apresentam algumas características importantes:
● não possuem um conteúdo determinado, pois
são formas: indicam como as coisas devem ser e como devemos pensar, mas
não nos dizem quais coisas são, nem quais os conteúdos que devemos ou vamos
pensar;
● possuem validade universal, isto é, onde
houver razão (nos seres humanos e nas coisas, nos fatos e nos acontecimentos),
em todo o tempo e em todo lugar, tais princípios são verdadeiros e empregados
por todos (os humanos) e obedecidos por todos (coisas, fatos, acontecimentos);
● são necessários, isto é, indispensáveis
para o pensamento e para a vontade, indispensáveis para as coisas, os fatos e
os acontecimentos. Indicam que algo é assim e não pode ser de outra maneira.
Necessário significa: é impossível que não seja dessa maneira e que pudesse ser
de outra.
Ampliando
nossa idéia de razão
A idéia de razão que apresentamos até aqui e
que constitui o ideal de racionalidade criado pela sociedade européia ocidental
sofreu alguns abalos profundos desde o início do século XX.
Aqui, vamos apenas oferecer alguns exemplos
dos problemas que a Filosofia precisou enfrentar e que levaram a uma ampliação
da idéia da razão.
Um primeiro abalo veio das ciências da
Natureza ou, mais precisamente, da física e atingiu o princípio do
terceiro-excluído. A física da luz (ou óptica) descobriu que a luz tanto pode
ser explicada por ondas luminosas quanto por partículas descontínuas. Isso
significou que já não se podia dizer: “ou a luz se propaga por ondas contínuas
ou se propaga por partículas descontínuas”, como exigiria o princípio do
terceiro-excluído, mas sim que a luz pode propagar-se tanto de uma maneira como
de outra.
Por sua vez, a física atômica ou quântica
abalou o princípio da razão suficiente. Vimos que esse princípio afirma que,
conhecido A, posso determinar como dele necessariamente resultará B,
ou, conhecido B, posso determinar necessariamente como era A que
o causou. Em outras palavras, conhecido o estado E de um fenômeno, posso
deduzir como será o estado E2 ou E3 e
vice-versa: conhecidos E3 e E2 posso dizer
como era o estado E. Ora, a física dos átomos revelou que isso não é
possível, que não podemos saber as razões pelas quais os átomos se movimentam,
nem sua velocidade e direção, nem os efeitos que produzirão.
Esses dois problemas levaram a introduzir um
novo princípio racional na Natureza: o princípio da indeterminação.
Assim, o princípio da razão suficiente é válido para os fenômenos
macroscópicos, enquanto o princípio da indeterminação é válido para os
fenômenos em escala hipermicroscópica.
Um outro problema veio abalar o princípio da
identidade e da não-contradição. A física sempre considerou que a Natureza
obedece às leis universais da razão objetiva sem depender da razão subjetiva.
Em outras palavras, as leis da Natureza existem por si mesmas, são necessárias
e universais por si mesmas e não dependem do sujeito do conhecimento.
Contudo, a teoria da relatividade mostrou que
as leis da Natureza dependem da posição ocupada pelo observador, isto é, pelo sujeito
do conhecimento e, portanto, para um observador situado fora de nosso sistema
planetário, a Natureza poderá seguir leis completamente diferentes, de tal modo
que, por exemplo, o que é o espaço e o tempo para nós poderá não ser para
outros seres (se existirem) da galáxia; a geometria que seguimos pode não ser a
que tenha sentido noutro sistema planetário; o que pode ser contraditório para
nós poderá não ser para habitantes de outra galáxia e assim por diante.
Um outro problema, também atingindo os princípios
da razão, foi trazido pela lógica. O lógico alemão Frege apresentou o seguinte
problema: quando digo “a estrela da manhã é a estrela da tarde” estou
caindo em contradição e perdendo o princípio da identidade. No entanto,
“estrela da manhã” é o planeta Vênus e “estrela da tarde” também é o planeta
Vênus; dessa perspectiva, não há contradição alguma no que digo. É preciso,
então, distinguir em nosso pensamento e em nossa linguagem três níveis: o
objeto a que nós nos referimos, os enunciados que empregamos e o sentido desses
enunciados em sua relação com o objeto referido. Somente dessa maneira podemos
manter a racionalidade dos princípios da identidade, da não-contradição e do
terceiro-excluído.
Enfim, um outro tipo de problema foi trazido
com o desenvolvimento dos estudos da antropologia, que mostraram como outras
culturas podem oferecer uma concepção muito diferente da que estamos acostumados sobre o pensamento
e a realidade. Isso não significa, como imaginaram durante séculos os
colonizadores, que tais culturas ou sociedades sejam irracionais ou
pré-racionais, e sim que possuem uma outra idéia do conhecimento e outros
critérios para a explicação da realidade.
Como a palavra razão é européia e
ocidental, parece difícil falarmos numa outra razão, que seria própria
de outros povos e culturas. No entanto, o que os estudos antropológicos
mostraram é que precisamos reconhecer a “nossa razão” e a “razão deles”,
que se trata de uma outra razão e não da mesma razão em
diferentes graus de uma única evolução.
Indeterminação da Natureza, pluralidade de
enunciados para um mesmo objeto, pluralidade e diferenciação das culturas foram
alguns dos problemas que abalaram a razão, no século XX. A esse abalo devemos
acrescentar dois outros. O primeiro deles foi trazido por um não-filósofo,
Marx, quando introduziu a noção de ideologia; o segundo também foi trazido por
um não-filósofo, Freud, quando introduziu o conceito de inconsciente.
A noção de ideologia veio mostrar que as
teorias e os sistemas filosóficos ou científicos, aparentemente rigorosos e
verdadeiros, escondiam a realidade social, econômica e política, e que a razão,
em lugar de ser a busca e o conhecimento da verdade, poderia ser um poderoso
instrumento de dissimulação da realidade, a serviço da exploração e da dominação
dos homens sobre seus semelhantes. A razão seria um instrumento da falsificação
da realidade e de produção de ilusões pelas quais uma parte do gênero humano se
deixa oprimir pela outra.
A noção de inconsciente, por sua vez, revelou
que a razão é muito menos poderosa do que a Filosofia imaginava, pois nossa
consciência é, em grande parte, dirigida e controlada por forças profundas e
desconhecidas que permanecem inconscientes e jamais se tornarão plenamente
conscientes e racionais. A razão e a loucura fazem parte de nossa estrutura
mental e de nossas vidas e, muitas vezes, como por exemplo no fenômeno do
nazismo, a razão é louca e destrutiva.
Fatos como esses - as descobertas na física,
na lógica, na antropologia, na história, na psicanálise - levaram o filósofo
francês Merleau-Ponty a dizer que uma das tarefas mais importantes da Filosofia
contemporânea deveria ser a de encontrar uma nova idéia da razão, uma razão
alargada, na qual pudessem entrar os princípios da racionalidade definidos
por outras culturas e encontrados pelas descobertas científicas.
Esse alargamento é duplamente necessário e
importante. Em primeiro lugar, porque ele exprime a luta contra o colonialismo
e contra o etnocentrismo - isto é, contra a visão de que a “nossa” razão e a
“nossa” cultura são superiores e melhores do que as dos outros povos. Em
segundo lugar, porque a razão estaria destinada ao fracasso se não fosse capaz
de oferecer para si mesma novos princípios exigidos pelo seu próprio trabalho
racional de conhecimento.
Excelente texto, proprio para pessoas como eu, apesar de lidar com outras formas, sente necessidade de entender a filisofia
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