Os problemas do inatismo e do empirismo: soluções filosóficas
Convite à Filosofia
De Marilena Chaui
Ed. Ática, São Paulo, 2000.
De Marilena Chaui
Ed. Ática, São Paulo, 2000.
Unidade 2
A Razão
A Razão
Capítulo 4
Os problemas do inatismo e do empirismo:
soluções filosóficas
Os problemas do inatismo e do empirismo:
soluções filosóficas
Inatismo
e empirismo: questões e respostas
Vimos, no capítulo anterior, que a razão
enfrenta problemas sérios quanto à sua intenção de ser conhecimento universal e
necessário da realidade. Vimos também que, como conseqüência de conflitos e
impasses entre o inatismo e o empirismo, surgiu na Filosofia a tendência ao
ceticismo, isto é, passou-se a duvidar de que o conhecimento racional, como
conhecimento certo, verdadeiro e inquestionável, seria possível.
Neste capítulo vamos examinar algumas
soluções propostas pela Filosofia para resolver essa questão.
Os problemas criados pela divergência entre
inatistas e empiristas foram resolvidos em dois momentos: o primeiro é anterior
à filosofia de David Hume e encontra-se na filosofia de Leibniz; o segundo é
posterior à filosofia de Hume e encontra-se na filosofia de Kant.
A
solução de Leibniz no século XVII
Leibniz estabeleceu uma distinção entre verdades
de razão e verdades de fato.
As verdades de razão enunciam que uma coisa
é, necessária e universalmente, não podendo de modo algum ser diferente do que
é e de como é. O exemplo mais evidente das verdades de razão são as idéias
matemáticas. É impossível que o triângulo não tenha três lados e que a soma de
seus ângulos não seja igual a soma de dois ângulos retos; é impossível que um
círculo não tenha todos os pontos eqüidistantes do centro e que não seja a
figura formada pelo movimento de um semi-eixo ao redor de um centro fixo; é
impossível que 2 + 2 não seja igual a 4; é impossível que o todo não seja maior
do que as partes.
As verdades de razão são inatas. Isso não
significa que uma criança, por exemplo, nasça conhecendo a matemática e sabendo
realizar operações matemáticas, demonstrar teoremas ou resolver problemas nessa
área do conhecimento. Significa que nascemos com a capacidade racional,
puramente intelectual, para conhecer idéias que não dependem da experiência
para serem formuladas e para serem verdadeiras.
As verdades de fato, ao contrário, são as que
dependem da experiência, pois enunciam idéias que são obtidas através da
sensação, da percepção e da memória. As verdades de fato são empíricas e se
referem a coisas que poderiam ser diferentes do que são, mas que são como são
porque há uma causa para que sejam assim. Quando digo “Esta rosa é vermelha”,
nada impede que ela pudesse ser branca ou amarela, mas se ela é vermelha é
porque alguma causa a fez ser assim e uma outra causa poderia tê-la feito
amarela. Mas não é acidental ou contingente que ela tenha cor e é a cor que
possui uma causa necessária.
As verdades de fato são verdades porque para
elas funciona o princípio da razão suficiente, segundo o qual tudo o que
existe, tudo o que percebemos e tudo aquilo de que temos experiência possui uma
causa determinada e essa causa pode ser conhecida. Pelo princípio da razão
suficiente – isto é, pelo conhecimento das causas – todas as verdades de fato
podem tornar-se verdades necessárias e serem consideradas verdades de razão,
ainda que para conhecê-las dependamos da experiência.
Observamos, assim, que, para Leibniz, o
princípio da razão suficiente ou a idéia de causalidade universal e necessária
permite manter as idéias inatas e as idéias empíricas. É justamente o princípio
da causalidade, como vimos, que será alvo das críticas dos empiristas, na
filosofia de David Hume. Para esse filósofo, o princípio da razão suficiente é
apenas um hábito adquirido por experiência como resultado da repetição e da
freqüência de nossas impressões sensoriais. A crítica de Hume à causalidade e
ao princípio da razão suficiente leva à resposta de Kant.
A
solução kantiana
A resposta aos problemas do inatismo e do
empirismo oferecida pelo filósofo alemão do século XVIII, Immanuel Kant, é
conhecida com o nome de “revolução copernicana” em Filosofia. Por quê? Qual a
relação entre Kant e o que fizera Copérnico, quase dois séculos antes do
kantismo?
Vejamos, muito brevemente, o que foi a
revolução copernicana em astronomia para, depois, vermos o que foi ela em
Filosofia.
A tradição antiga e medieval considerava que
o mundo possuía limites (ou seja, o mundo era finito), sendo formado por um
conjunto de sete esferas concêntricas, em cujo centro estava a Terra, imóvel. À
volta da Terra giravam as esferas nas quais estavam presos os planetas (o Sol e
a Lua eram considerados planetas). Em grego, Terra se diz Gaia ou Geia.
Como ela se encontrava no centro, o sistema astronômico era chamado de geocêntrico
e o mundo era explicado pelo geocentrismo.
A revolução copernicana demonstrou que o
sistema geocêntrico era falso e que:
1. o mundo não é finito, mas é um Universo
infinito;
2. os astros não estão presos em esferas, mas
fazem um movimento (como demonstrará Kepler, depois de Copérnico), cuja forma é
a de uma elipse;
3. o centro do Universo não é a Terra;
4. o Sol (como já fora demonstrado por outros
astrônomos) não é um planeta, mas uma estrela, e a Terra, como os outros
planetas, gira ao redor dele;
5. o próprio Sol também se move, mas não em
volta da Terra.
Em grego, Sol se diz Hélios e por isso
o sistema de Copérnico é chamado de heliocêntrico, e sua explicação, de heliocentrismo,
pois o Sol está no centro do nosso sistema planetário e tudo se move ao seu redor.
Voltemos agora a Kant e observemos o que ele
diz.
Inatistas e empiristas, isto é, todos os
filósofos, parecem ser como astrônomos geocêntricos, buscando um centro que não
é verdadeiro. Parecem, diz Kant, como alguém que, querendo assar um frango,
fizesse o forno girar em torno dele e não o frango em torno do fogo.
Qual o engano dos filósofos?
Em lugar de, primeiro e antes de tudo,
estudar o que é a própria razão e indagar o que ela pode e o que não pode
conhecer, o que é a experiência e o que ela pode ou não pode conhecer; em vez,
enfim, de procurar saber o que é a verdade, os filósofos preferiram começar
dizendo o que a realidade é, afirmando que ela é racional e que, por isso, pode
ser inteiramente conhecida pelas idéias da razão. Colocaram a realidade
exterior ou os objetos do conhecimento no centro e fizeram a razão, ou o
sujeito do conhecimento, girar em torno deles.
Façamos, pois, uma revolução copernicana em
Filosofia: em vez de colocar no centro a realidade objetiva ou os objetos do
conhecimento, dizendo que são racionais e que podem ser conhecidos tais como
são em si mesmos, comecemos colocando no centro a própria razão.
Não é a razão a Luz Natural? Não é ela o Sol
que ilumina todas as coisas e em torno do qual tudo gira? Comecemos, portanto,
pela Luz Natural no centro do conhecimento e indaguemos: O que é ela? O que ela
pode conhecer? Quais são as condições para que haja conhecimento verdadeiro?
Quais são os limites que o conhecimento humano não pode transpor? Como a razão
e a experiência se relacionam?
Comecemos, então, pelo sujeito do
conhecimento. E comecemos mostrando que este sujeito é a razão universal e
não uma subjetividade pessoal e psicológica, que ele é o sujeito conhecedor
e não Pedro, Paulo, Maria ou Isabel, esta ou aquela pessoa, este ou aquele
indivíduo.
O que é a razão?
A razão é uma estrutura vazia, uma forma pura
sem conteúdos. Essa estrutura (e não os conteúdos) é que é universal, a mesma
para todos os seres humanos, em todos os tempos e lugares. Essa estrutura é
inata, isto é, não é adquirida através da experiência. Por ser inata e não
depender da experiência para existir, a razão é, do ponto de vista do
conhecimento, anterior à experiência. Ou, como escreve Kant, a estrutura
da razão é a priori (vem antes da experiência e não depende
dela).
Porém, os conteúdos que a razão conhece e nos
quais ela pensa, esses sim, dependem da experiência. Sem ela, a razão seria
sempre vazia, inoperante, nada conhecendo. Assim, a experiência fornece a matéria
(os conteúdos) do conhecimento para a razão e esta, por sua vez, fornece a forma
(universal e necessária) do conhecimento. A matéria do conhecimento, por ser
fornecida pela experiência, vem depois desta e por isso é, no dizer de
Kant, a posteriori.
Qual o engano dos inatistas? Supor que os
conteúdos ou a matéria do conhecimento são inatos. Não existem idéias inatas.
Qual o engano dos empiristas? Supor que a
estrutura da razão é adquirida por experiência ou causada pela experiência. Na
verdade, a experiência não é causa das idéias, mas é a ocasião para que
a razão, recebendo a matéria ou o conteúdo, formule as idéias.
Dessa maneira, a estrutura da razão é inata e
universal, enquanto os conteúdos são empíricos e podem variar no tempo e no
espaço, podendo transformar-se com novas experiências e mesmo revelarem-se
falsos, graças a experiências novas.
O que é o conhecimento racional, sem o qual
não há Filosofia nem ciência?
É a síntese que a razão realiza entre
uma forma universal inata e um conteúdo particular oferecido pela experiência.
Qual é a estrutura da razão?
A razão é constituída por três estruturas a
priori:
1. a estrutura ou forma da sensibilidade, isto
é, a estrutura ou forma da percepção sensível ou sensorial;
2. a estrutura ou forma do entendimento, isto
é, do intelecto ou inteligência;
3. a estrutura ou forma da razão propriamente
dita, quando esta não se relaciona nem com os conteúdos da sensibilidade, nem
com os conteúdos do entendimento, mas apenas consigo mesma. Como, para Kant, só
há conhecimento quando a experiência oferece conteúdos à sensibilidade e ao
entendimento, a razão, separada da sensibilidade e do entendimento, não
conhece coisa alguma e não é sua função conhecer. Sua função é a de regular
e controlar a sensibilidade e o entendimento. Do ponto de vista do
conhecimento, portanto, a razão é a função reguladora da atividade do sujeito
do conhecimento.
A forma da sensibilidade é o que nos permite
ter percepções, isto é, a forma é aquilo sem o que não pode haver percepção,
sem o que a percepção seria impossível. Percebemos todas as coisas como dotadas
de figura, dimensões (altura, largura, comprimento), grandeza: ou seja, nós as
percebemos como realidades espaciais.
Não interessa se cada um de nós vê cores de
uma certa maneira, gosta mais de uma cor ou de outra, ouve sons de uma certa
maneira, gosta mais de certos sons do que de outros, etc. O que importa é que
nada pode ser percebido por nós se não possuir propriedades espaciais; por
isso, o espaço não é algo percebido, mas é o que permite haver percepção
(percebemos lugares, posições, situações, mas não percebemos o próprio espaço).
Assim, o espaço é a forma a priori da sensibilidade e existe em nossa
razão antes e sem a experiência.
Também só podemos perceber as coisas como
simultâneas ou sucessivas: percebemos as coisas como se dando num só instante
ou em instantes sucessivos. Ou seja, percebemos as coisas como realidades
temporais. Não percebemos o tempo (temos a experiência do passado, do
presente e do futuro, porém não temos percepção do próprio tempo), mas ele é a
condição de possibilidade da percepção das coisas e é a outra forma a priori
da sensibilidade que existe em nossa razão antes da experiência e sem a
experiência.
A percepção recebe conteúdos da experiência e
a sensibilidade organiza racionalmente segundo a forma do espaço e do tempo.
Essa organização espaço-temporal dos objetos do conhecimento é que é inata,
universal e necessária.
O entendimento, por sua vez, organiza os
conteúdos que lhe são enviados pela sensibilidade, isto é, organiza as
percepções. Novamente o conteúdo é oferecido pela experiência sob a forma do
espaço e do tempo, e a razão, através do entendimento, organiza tais conteúdos
empíricos.
Essa organização transforma as percepções em
conhecimentos intelectuais ou em conceitos. Para tanto, o entendimento possui a
priori (isto é, antes da experiência e independente dela) um conjunto de
elementos que organizam os conteúdos empíricos. Esses elementos são chamados de
categorias e sem elas não pode haver conhecimento intelectual, pois são
as condições para tal conhecimento. Com as categorias a priori, o
sujeito do conhecimento formula os conceitos.
As categorias organizam os dados da
experiência segundo a qualidade, a quantidade, a causalidade, a finalidade, a
verdade, a falsidade, a universalidade, a particularidade. Assim, longe de a
causalidade, a qualidade e a quantidade serem resultados de hábitos
psicológicos associativos, eles são os instrumentos racionais com os quais o
sujeito do conhecimento organiza a realidade e a conhece. As categorias,
estruturas vazias, são as mesmas em toda época e em todo lugar, para todos os
seres racionais.
Graças à universalidade e à necessidade das
categorias, as ciências são possíveis e válidas; o empirismo, portanto, está
equivocado.
Em instante algum Kant admite que a realidade,
em si mesma, é espacial, temporal, qualitativa, quantitativa, causal, etc. Isso
seria regredir ao forno girando em torno do frango. O que Kant afirma é que a
razão e o sujeito do conhecimento possuem essas estruturas para poder conhecer
e que, por serem elas universais e necessárias, o conhecimento é racional e
verdadeiro para os seres humanos.
É isso que a razão pode. O que ela não pode
(e nisso inatistas e empiristas se enganaram) é supor que com suas estruturas
passe a conhecer a realidade tal como esta é em si mesma. A razão conhece os
objetos do conhecimento. O objeto do conhecimento é aquele conteúdo empírico
que recebeu as formas e as categorias do sujeito do conhecimento. A razão não
está nas coisas, mas em nós. A razão é sempre razão subjetiva e não pode
pretender conhecer a realidade tal como ela seria em si mesma, nem pode
pretender que exista uma razão objetiva governando as próprias coisas.
O erro dos inatistas e empiristas foi o de
supor que nossa razão alcança a realidade em si. Para um inatista como
Descartes, a realidade em si é espacial, temporal, qualitativa, quantitativa,
causal. Para um empirista como Hume, a realidade em si pode ou não repetir
fatos sucessivos no tempo, pode ou não repetir fatos contíguos no espaço, pode
ou não repetir as mesmas seqüências de acontecimentos.
Para Kant, jamais poderemos saber se a
realidade em si é espacial, temporal, causal, qualitativa, quantitativa. Mas
sabemos que nossa razão possui uma estrutura universal, necessária e a
priori que organiza necessariamente a realidade em termos das formas
da sensibilidade e dos conceitos e categorias do entendimento.
Como razão subjetiva, nossa razão pode garantir a verdade da Filosofia e da
ciência.
A
resposta de Hegel
Um filósofo alemão do século XIX, Hegel, ofereceu
uma solução para o problema do inatismo e do empirismo posterior à de Kant.
Hegel criticou o inatismo, o empirismo e o
kantismo. A todos endereçou a mesma crítica, qual seja, a de não haverem
compreendido o que há de mais fundamental e de mais essencial à razão: a razão
é histórica.
De fato, a Filosofia, preocupada em garantir
a diferença entre a mera opinião (“eu acho que”, “eu gosto de”, “eu não gosto
de”) e a verdade (“eu penso que”, “eu sei que”, “isto é assim porque”),
considerou que as idéias só seriam racionais e verdadeiras se fossem
intemporais, perenes, eternas, as mesmas em todo tempo e em todo lugar. Uma
verdade que mudasse com o tempo ou com os lugares seria mera opinião, seria
enganosa, não seria verdade. A razão, sendo a fonte e a condição da verdade,
teria também que ser intemporal.
É essa intemporalidade atribuída à verdade e
à razão que Hegel criticou em toda a Filosofia anterior.
Ao afirmar que a razão é histórica, Hegel não
está, de modo algum, dizendo que a razão é algo relativo, que vale hoje e não
vale amanhã, que serve aqui e não serve ali, que cada época não alcança
verdades universais. Não. O que Hegel está dizendo é que a mudança, a
transformação da razão e de seus conteúdos é obra racional da própria razão. A
razão não é uma vítima do tempo, que lhe roubaria a verdade, a universalidade,
a necessidade. A razão não está na História; ela é a História. A
razão não está no tempo; ela é o tempo. Ela dá sentido ao tempo.
Hegel também fez uma crítica aos inatistas e
aos empiristas muito semelhante à que Kant fizera. Ou seja, inatistas e
empiristas acreditam que o conhecimento racional vem das próprias coisas para
nós, que o conhecimento depende exclusivamente da ação das coisas sobre nós, e
que a verdade é a correspondência entre a coisa e a idéia da coisa.
Para o empirista, a realidade “entra” em nós
pela experiência. Para o inatista a verdade “entra” em nós pelo poder de uma
força espiritual que a coloca em nossa alma, de modo que as idéias inatas não
são produzidas pelo próprio sujeito do conhecimento ou pela própria razão, mas
são colocadas em nós por uma força sábia e superior a nós (como Deus, por
exemplo). Assim, o conhecimento parece depender inteiramente de algo que vem de
fora para dentro de nós. No caso dos inatistas, depende da divindade; no caso
dos empiristas, depende da experiência sensível.
Inatistas e empiristas se enganaram por
excesso de objetivismo, isto é, por julgarem que o conhecimento racional
dependeria inteiramente dos objetos do conhecimento.
Mas Kant também se enganou e pelo motivo
oposto, isto é, por excesso de subjetivismo, por acreditar que o conhecimento
racional dependeria exclusivamente do sujeito do conhecimento, das estruturas
da sensibilidade e do entendimento.
A razão, diz Hegel, não é nem exclusivamente
razão objetiva (a verdade está nos objetos) nem exclusivamente subjetiva (a
verdade está no sujeito), mas ela é a unidade necessária do objetivo e do
subjetivo. Ela é o conhecimento da harmonia entre as coisas e as idéias,
entre o mundo exterior e a consciência, entre o objeto e o sujeito, entre a
verdade objetiva e a verdade subjetiva. O que é afinal a razão para Hegel?
A razão é:
1. o conjunto das leis do pensamento, isto é,
os princípios, os procedimentos do raciocínio, as formas e as estruturas
necessárias para pensar, as categorias, as idéias – é razão subjetiva;
2. a ordem, a organização, o encadeamento e as
relações das próprias coisas, isto é, a realidade objetiva e racional – é razão
objetiva;
3. a relação interna e necessária entre as leis
do pensamento e as leis do real. Ela é a unidade da razão subjetiva e da razão
objetiva.
Por que a razão é histórica?
A unidade ou harmonia entre o objetivo e o
subjetivo, entre a realidade das coisas e o sujeito do conhecimento não é um
dado eterno, algo que existiu desde todo o sempre, mas é uma conquista
da razão e essa conquista a razão realiza no tempo. A razão não tem como ponto
de partida essa unidade, mas a tem como ponto de chegada, como resultado
do percurso histórico ou temporal que ela própria realiza.
Qual o melhor exemplo para compreender o que
Hegel quer dizer? O melhor exemplo é o que acabamos de ver nos capítulos 2 e 3
desta unidade.
Vimos que os inatistas começaram combatendo a
suposição de que opinião e verdade são a mesma coisa. Para livrarem-se dessa
suposição, o que fizeram eles? Disseram que a opinião pertence ao campo da
experiência sensorial, pessoal, psicológica, instável e que as idéias da razão
são inatas, universais, necessárias, imutáveis.
Os empiristas, no entanto, negaram que os
inatistas tivessem acertado, negaram que as idéias pudessem ser inatas e
fizeram a razão depender da experiência psicológica ou da percepção. Ao fazê-lo,
revelaram os pontos fracos dos inatistas, mas abriram o flanco para um problema
que não podiam resolver, isto é, a validade das ciências.
A filosofia kantiana negou, então, que
inatistas e empiristas estivessem certos. Negou que pudéssemos conhecer a
realidade em si das coisas, negou que a razão possuísse conteúdos inatos,
mostrando que os conteúdos dependem da experiência; mas negou também que a
experiência fosse a causa da razão, ou que esta fosse adquirida, pois possui
formas e estruturas inatas. Kant deu prioridade ao sujeito do conhecimento,
enquanto empiristas e inatistas davam prioridade ao objeto do conhecimento.
Que diz Hegel? Que esses conflitos
filosóficos são a história da razão buscando conhecer-se a si mesma e que,
graças a tais conflitos, graças às contradições entre as filosofias, a
Filosofia pode chegar à descoberta da razão como síntese, unidade ou harmonia
das teses opostas ou contraditórias.
Em cada momento de sua história, a razão
produziu uma tese a respeito de si mesma e, logo a seguir, uma tese contrária à
primeira ou uma antítese. Cada tese e cada antítese foram momentos necessários
para a razão conhecer-se cada vez mais. Cada tese e cada antítese foram
verdadeiras, mas parciais. Sem elas, a razão nunca teria chegado a conhecer-se
a si mesma. Mas a razão não pode ficar estacionada nessas contradições que ela
própria criou, por uma necessidade dela mesma: precisa ultrapassá-las numa
síntese que una as teses contrárias, mostrando onde está a verdade de cada uma
delas e conservando essa verdade. Essa é a razão histórica.
Empiristas,
kantianos e hegelianos
Embora Hegel tenha proposto sintetizar a
história da razão, considerando, portanto, que inatistas, empiristas e
kantianos eram parte do passado dessa história, isso não significa que todos os
filósofos tenham aceitado a solução hegeliana como resposta final.
Assim, os empiristas não desapareceram.
Reformularam muitas de suas teses e posições, mas permaneceram empiristas. Em
outras palavras, persiste, na Filosofia, uma corrente empirista. Foi também o
que aconteceu com os filósofos inatistas; o mesmo pode ser dito com relação aos
que adotaram a filosofia kantiana. Reformularam teses, acrescentaram novas
idéias e perspectivas, mas se mantiveram kantianos.
Há os que aceitaram a solução hegeliana,
assim como há os que a recusaram e dos quais falaremos no próximo capítulo.
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