O conhecimento
Convite à Filosofia
De Marilena Chaui
Ed. Ática, São Paulo, 2000.
De Marilena Chaui
Ed. Ática, São Paulo, 2000.
Unidade 4
O conhecimento
O conhecimento
Capítulo 1
A preocupação com o conhecimento
A preocupação com o conhecimento
O
conhecimento e os primeiros filósofos
Quando estudamos o nascimento da Filosofia na
Grécia, vimos que os primeiros filósofos – os pré-socráticos – dedicavam-se a
um conjunto de indagações principais: Por que e como as coisas existem? O que é
o mundo? Qual a origem da Natureza e quais as causas de sua transformação?
Essas indagações colocavam no centro a pergunta: o que é o Ser?
A palavra ser em português, traduz a
palavra latina esse e a expressão grega ta onta. A palavra latina
esse é o infinitivo de um verbo, o verbo ser. A expressão grega ta
onta quer dizer: as coisas existentes, os entes, os seres. No singular, ta
onta se diz to on, que é traduzida por: o ser. Os primeiros
filósofos ocupavam-se com a origem e a ordem do mundo, o kosmos, e a
filosofia nascente era uma cosmologia. Pouco a pouco, passou-se a indagar o que
era o próprio kosmos, qual era o fundo eterno e imutável que permanecia
sob a multiplicidade e transformação das coisas. Qual era e o que era o ser
subjacente a todos os seres. Com isto, a filosofia nascente tornou-se ontologia,
isto é, conhecimento ou saber sobre o ser.
Por esse mesmo motivo, considera-se que os
primeiros filósofos não tinham uma preocupação principal com o conhecimento
enquanto conhecimento, isto é, não indagavam se podemos ou não conhecer o Ser,
mas partiam da pressuposição de que o podemos conhecer, pois a verdade, sendo aletheia,
isto é, presença e manifestação das coisas para os nossos sentidos e para o
nosso pensamento, significa que o Ser está manifesto e presente para nós e,
portanto, nós o podemos conhecer.
Todavia, a opinião de que os primeiros
filósofos não se preocupavam com nossa capacidade e possibilidade de
conhecimento não é exata. Para tanto, basta levarmos em conta o fato de
afirmarem que a realidade (o Ser, a Natureza) é racional e que a podemos
conhecer porque também somos racionais; nossa razão é parte da racionalidade do
mundo, dela participando.
Heráclito,
Parmênides e Demócrito
Alguns exemplos indicam a existência da
preocupação dos primeiros filósofos com o conhecimento e, aqui, tomaremos três:
Heráclito de Éfeso, Parmênides de Eléia e Demócrito de Abdera.
Heráclito de Éfeso considerava a Natureza (o
mundo, a realidade) como um “fluxo perpétuo”, o escoamento contínuo dos seres
em mudança perpétua. Dizia: “Não podemos banhar-nos duas vezes no mesmo rio,
porque as águas nunca são as mesmas e nós nunca somos os mesmos”. Comparava o
mundo à chama de uma vela que queima sem cessar, transformando a cera em fogo,
o fogo em fumaça e a fumaça em ar. O dia se torna noite, o verão se torna
outono, o novo fica velho, o quente esfria, o úmido seca, tudo se transforma no
seu contrário.
A realidade, para Heráclito, é a harmonia dos
contrários, que não cessam de se transformar uns nos outros. Se tudo não cessa
de se transformar perenemente, como explicar que nossa percepção nos ofereça as
coisas como se fossem estáveis, duradouras e permanentes? Com essa pergunta o
filósofo indicava a diferença entre o conhecimento que nossos sentidos nos
oferecem e o conhecimento que nosso pensamento alcança, pois nossos sentidos
nos oferecem a imagem da estabilidade e nosso pensamento alcança a verdade como
mudança contínua.
Parmênides de Eléia colocava-se na posição
oposta à de Heráclito. Dizia que só podemos pensar sobre aquilo que permanece
sempre idêntico a si mesmo, isto é, que o pensamento não pode pensar sobre as
coisas que são e não são, que ora são de um modo e ora são de outro, que são
contrárias a si mesmas e contraditórias.
Conhecer é alcançar o idêntico, imutável.
Nossos sentidos nos oferecem a imagem de um mundo em incessante mudança, num
fluxo perpétuo, onde nada permanece idêntico a si mesmo: o dia vira noite, o
inverno vira primavera, o doce se torna amargo, o pequeno vira grande, o grande
diminui, o doce amarga, o quente esfria, o frio se aquece, o líquido vira vapor
ou vira sólido.
Como pensar o que é e o que não é ao mesmo
tempo? Como pensar o instável? Como pensar o que se torna oposto e contrário a
si mesmo? Não é possível, dizia Parmênides. Pensar é dizer o que um ser é em
sua identidade profunda e permanente. Com isso, afirmava o mesmo que Heráclito
– perceber e pensar são diferentes -, mas o dizia no sentido oposto ao de
Heráclito, isto é, percebemos mudanças impensáveis e devemos pensar identidades
imutáveis.
Demócrito de Abdera desenvolveu uma teoria
sobre o Ser ou sobre a Natureza conhecida com o nome de atomismo: a
realidade é constituída por átomos. A palavra átomo tem origem grega e
significa: o que não pode ser cortado ou dividido, isto é, a menor partícula
indivisível de todas as coisas. Os seres surgem por composição dos átomos,
transformam-se por novos arranjos dos átomos e morrem por separação dos átomos.
Os átomos, para Demócrito, possuem formas e
consistências diferentes (redondos, triangulares, lisos, duros, moles, rugosos,
pontiagudos, etc.) e essas diferenças e os diferentes modos de combinação entre
eles produzem a variedade de seres, suas mudanças e desaparições. Através de
nossos órgãos dos sentidos, percebemos o quente e o frio, o doce e o amargo, o
seco e o úmido, o grande e o pequeno, o duro e o mole, sabores, odores,
texturas, o agradável e o desagradável, sentimos prazer e dor, porque
percebemos os efeitos das combinações dos átomos que, em si mesmos, não possuem
tais qualidades.
Somente o pensamento pode conhecer os átomos,
que são invisíveis para nossa percepção sensorial. Dessa maneira, Demócrito
concordava com Heráclito e Parmênides em que há uma diferença entre o que
conhecemos através de nossa percepção e o que conhecemos apenas pelo
pensamento; porém, diversamente dos outros dois filósofos, não considerava a
percepção ilusória, mas apenas um efeito da realidade sobre nós. O conhecimento
sensorial ou sensível é tão verdadeiro quanto aquilo que o pensamento puro
alcança, embora de uma verdade diferente e menos profunda ou menos relevante do
que aquela alcançada pelo puro pensamento.
Esses três exemplos nos mostram que, desde os
seus começos, a Filosofia preocupou-se com o problema do conhecimento, pois
sempre esteve voltada para a questão do verdadeiro. Desde o início, os
filósofos se deram conta de que nosso pensamento parece seguir certas leis ou
regras para conhecer as coisas e que há uma diferença entre perceber e pensar.
Pensamos a partir do que percebemos ou pensamos negando o que percebemos? O
pensamento continua, nega ou corrige a percepção? O modo como os seres nos
aparecem é o modo como os seres realmente são?
Sócrates
e os sofistas
Preocupações como essas levaram, na Grécia
clássica, a duas atitudes filosóficas: a dos sofistas e a de Sócrates – com
eles, os problemas do conhecimento tornaram-se centrais.
Os sofistas, diante da pluralidade e do
antagonismo das filosofias anteriores, ou dos conflitos entre as várias
ontologias, concluíram que não podemos conhecer o Ser, mas só podemos
ter opiniões subjetivas sobre a realidade.
Por isso, para se relacionarem com o mundo e
com os outros humanos, os homens devem valer-se de um outro instrumento – a
linguagem – para persuadir os outros de suas próprias idéias e opiniões. A
verdade é uma questão de opinião e de persuasão, e a linguagem é mais
importante do que a percepção e o pensamento.
Em contrapartida, Sócrates, distanciando-se
dos primeiros filósofos e opondo-se aos sofistas, afirmava que a verdade pode
ser conhecida, mas primeiro devemos afastar as ilusões dos sentidos e as das
palavras ou das opiniões e alcançar a verdade apenas pelo pensamento. Os sentidos
nos dão as aparências das coisas e as palavras, meras opiniões sobre elas.
Conhecer é passar da aparência à essência, da opinião ao conceito, do ponto de
vista individual à idéia universal de cada um dos seres e de cada um dos
valores da vida moral e política.
Platão
e Aristóteles
Sócrates fez a Filosofia preocupar-se com
nossa possibilidade de conhecer e indagar quais as causas das ilusões, dos
erros e da mentira. No esforço para definir as formas de conhecer e as
diferenças entre o conhecimento verdadeiro e a ilusão, Platão e Aristóteles
introduziram na Filosofia a idéia de que existem diferentes maneiras de
conhecer ou graus de conhecimento e que esses graus se distinguem pela ausência
ou presença do verdadeiro, pela ausência ou presença do falso.
Platão distingue quatro formas ou graus de
conhecimento, que vão do grau inferior ao superior: crença, opinião, raciocínio
e intuição intelectual. Para ele, os dois primeiros graus devem ser afastados
da Filosofia – são conhecimentos ilusórios ou das aparências, como os dos
prisioneiros da caverna – e somente os dois últimos devem ser considerados
válidos. O raciocínio treina e exercita nosso pensamento, preparando-o para uma
purificação intelectual que lhe permitirá alcançar uma intuição das idéias ou
das essências que formam a realidade ou que constituem o Ser.
Para Platão, o primeiro exemplo do
conhecimento puramente intelectual e perfeito encontra-se na matemática, cujas
idéias nada devem aos órgãos dos sentidos e não se reduzem a meras opiniões
subjetivas. O conhecimento matemático seria a melhor preparação do pensamento
para chegar à intuição intelectual das idéias verdadeiras, que constituem a
verdadeira realidade.
Platão diferencia e separa radicalmente duas
formas de conhecimento: o conhecimento sensível (crença e opinião) e o
conhecimento intelectual (raciocínio e intuição) afirmando que somente o
segundo alcança o Ser e a verdade. O conhecimento sensível alcança a mera
aparência das coisas, o conhecimento intelectual alcança a essência das coisas,
as idéias.
Aristóteles distingue sete formas ou graus de
conhecimento: sensação, percepção, imaginação, memória, raciocínio e intuição.
Para ele, ao contrário de Platão, nosso conhecimento vai sendo formado e
enriquecido por acumulação das informações trazidas por todos os graus, de modo
que, em lugar de uma ruptura entre o conhecimento sensível e o intelectual,
Aristóteles estabelece uma continuidade entre eles.
A separação se dá entre os seis primeiros
graus e o último, ou a intuição, que é puramente intelectual ou um ato do
pensamento puro. Essa separação, porém, não significa que os outros graus
ofereçam conhecimentos ilusórios ou falsos e sim que oferecem tipos de
conhecimentos diferentes, que vão de um grau menor a um grau maior de verdade.
Em cada um deles temos acesso a um aspecto do
Ser ou da realidade e, na intuição intelectual, temos o conhecimento pleno e
total da realidade ou dos princípios da realidade plena e total, aquilo que
Aristóteles chamava de “o Ser enquanto Ser”.
A diferença entre os seis primeiros graus e o
último decorre da diferença do objeto do conhecimento, isto é, os seis
primeiros graus conhecem objetos que se oferecem a nós na sensação, na
imaginação, no raciocínio, enquanto o sétimo lida com um objeto que só pode ser
alcançado pelo pensamento puro.
Princípios
gerais
Com os filósofos gregos, estabeleceram-se
alguns princípios gerais do conhecimento verdadeiro:
● as fontes e as formas do conhecimento:
sensação, percepção, imaginação, memória, linguagem, raciocínio e intuição
intelectual;
● a distinção entre o conhecimento sensível e
o conhecimento intelectual;
● o papel da linguagem no conhecimento;
● a diferença entre opinião e saber;
● a diferença entre aparência e essência;
● a definição dos princípios do pensamento
verdadeiro (identidade, não-contradição, terceiro excluído, causalidade), da
forma do conhecimento verdadeiro (idéias, conceitos e juízos) e dos procedimentos
para alcançar o conhecimento verdadeiro (indução, dedução, intuição);
● a distinção dos campos do conhecimento
verdadeiro, sistematizados por Aristóteles em três ramos: teorético
(referente aos seres que apenas podemos contemplar ou observar, sem agir sobre
eles ou neles interferir), prático (referente às ações humanas: ética,
política e economia) e técnico (referente à fabricação e ao trabalho
humano, que pode interferir no curso da Natureza, criar instrumentos ou
artefatos: medicina, artesanato, arquitetura, poesia, retórica, etc.).
Para os gregos, a realidade é a Natureza e
dela fazem parte os humanos e as instituições humanas. Por sua participação na
Natureza, os humanos podem conhecê-la, pois são feitos dos mesmos elementos que
ela e participam da mesma inteligência que a habita e dirige.
O poeta alemão Goethe criou estes versos, que
exprimem como os antigos concebiam o conhecimento:
Se os olhos não fossem solares
Jamais o Sol nós veríamos;
Se em nós não estivesse a própria força divina,
Como o divino sentiríamos?
Jamais o Sol nós veríamos;
Se em nós não estivesse a própria força divina,
Como o divino sentiríamos?
O intelecto humano conhece a inteligibilidade
do mundo, alcança a racionalidade do real e pode pensar a realidade porque nós
e ela somos feitos da mesma maneira, com os mesmos elementos e com a mesma
inteligência.
Os
filósofos modernos e a teoria do conhecimento
Quando se diz que a teoria do conhecimento
tornou-se uma disciplina específica da Filosofia somente com os filósofos
modernos (a partir do século XVII) não se pretende dizer que antes deles o
problema do conhecimento não havia ocupado outros filósofos, e sim que, para os
modernos, a questão do conhecimento foi considerada anterior à da ontologia e
pré-condição ou pré-requisito para a Filosofia e as ciências.
Por que essa mudança de perspectiva dos
gregos para os modernos? Porque entre eles instala-se o cristianismo, trazendo
problemas que os antigos filósofos desconheciam.
A perspectiva cristã introduziu algumas
distinções que romperam com a idéia grega de uma participação direta e
harmoniosa entre o nosso intelecto e a verdade, nosso ser e o mundo. O
cristianismo fez distinção entre fé e razão, verdades reveladas e verdades
racionais, matéria e espírito, corpo e alma; afirmou que o erro e a ilusão são
parte da natureza humana em decorrência do caráter pervertido de nossa vontade,
após o pecado original.
Em conseqüência, a Filosofia precisou
enfrentar três problemas novos:
1. Como, sendo seres decaídos e pervertidos,
podemos conhecer a verdade?
2. Sendo nossa natureza dupla (matéria e
espírito), como nossa inteligência pode conhecer o que é diferente dela? Isto
é, como seres corporais podem conhecer o incorporal (Deus) e como seres dotados
de alma incorpórea podem conhecer o corpóreo (mundo)?
3. Os filósofos antigos consideravam que
éramos entes participantes de todas as formas de realidade: por nosso corpo,
participamos da Natureza; por nossa alma, participamos da Inteligência divina.
O cristianismo, ao introduzir a noção de pecado original, introduziu a
separação radical entre os humanos (pervertidos e finitos) e a divindade (perfeita
e infinita). Com isso, fez surgir a pergunta: como o finito (humano) pode
conhecer a verdade (infinita e divina)?
Eis porque, durante toda a Idade Média, a fé
tornou-se central para a Filosofia, pois era através dela que essas perguntas
eram respondidas. Auxiliada pela graça divina, a fé iluminava nosso intelecto e
guiava nossa vontade, permitindo à nossa razão o conhecimento do que está ao
seu alcance, ao mesmo tempo em que nossa alma recebia os mistérios da
revelação. A fé nos fazia saber (mesmo que não pudéssemos compreender como isso
era possível) que, pela vontade soberana de Deus, era concedido à nossa alma
imaterial conhecer as coisas materiais.
Os filósofos modernos, porém, não aceitaram
essas respostas e por esse motivo a questão do conhecimento tornou-se central
para eles.
Os gregos se surpreendiam que pudesse haver
erro, ilusão e mentira. Como a verdade – aletheia – era concebida como
presença e manifestação do verdadeiro aos nossos sentidos ou ao nosso
intelecto, isto é, como presença do Ser à nossa experiência sensível ou ao puro
pensamento, a pergunta filosófica só podia ser: Como é possível o erro ou a
ilusão? Ou seja, como é possível ver o que não é, dizer o que não é, pensar o
que não é?
Para os modernos, a situação é exatamente
contrária. Se a verdade depende da revelação e da vontade divinas, e se nosso
intelecto foi pervertido pela nossa vontade pecadora, como podemos conhecer a
verdade? Se a verdade depender da fé e se depender da fraqueza da nossa
vontade, como nossa razão poderá conhecê-la?
O cristianismo, particularmente com santo
Agostinho, trouxe a idéia de que cada ser humano é uma pessoa. Essa
idéia vem do Direito Romano, que define a pessoa como um sujeito de direitos e
de deveres. Se somos pessoas, somos responsáveis por nossos atos e pensamentos.
Nossa pessoa é nossa consciência, que é nossa alma dotada de vontade,
imaginação, memória e inteligência.
A vontade é livre e, aprisionada num corpo
passional e fraco, pode mergulhar nossa alma na ilusão e no erro. Estar no erro
ou na verdade dependerá, portanto, de nós mesmos e por isso precisamos saber se
podemos ou não conhecer a verdade e em que condições tal conhecimento é
possível. Os primeiros filósofos cristãos e os medievais afirmavam que podemos
conhecer a verdade, desde que a razão não contradiga a fé e se submeta a ela no
tocante às verdades últimas e principais.
A primeira tarefa que os modernos se deram
foi a de separar fé de razão, considerando cada uma delas destinada a
conhecimentos diferentes e sem qualquer relação entre si. A segunda tarefa foi
a de explicar como a alma-consciência, embora diferente dos corpos, pode conhecê-los.
Consideraram que a alma pode conhecer os corpos porque os representa
intelectualmente por meio das idéias e estas são imateriais como a própria
alma. A terceira tarefa foi a de explicar como a razão e o pensamento podem
tornar-se mais fortes do que a vontade e controlá-la para que evite o erro.
O problema do conhecimento torna-se,
portanto, crucial e a Filosofia precisa começar pelo exame da capacidade humana
de conhecer, pelo entendimento ou sujeito do conhecimento. A teoria do
conhecimento volta-se para a relação entre o pensamento e as coisas, a
consciência (interior) e a realidade (exterior), o entendimento e a realidade;
em suma, o sujeito e o objeto do conhecimento.
Os dois filósofos que iniciam o exame da
capacidade humana para o erro e a verdade são o inglês Francis Bacon e o
francês René Descartes. O filósofo que propõe, pela primeira vez, uma teoria do
conhecimento propriamente dita é o inglês John Locke. A partir do século XVII,
portanto, a teoria do conhecimento torna-se uma disciplina central da
Filosofia.
Bacon
e Descartes
Os gregos indagavam: como o erro é possível?
Os modernos perguntaram: como a verdade é possível? Para os gregos, a verdade
era aletheia, para os modernos, veritas. Em outras palavras, para
os modernos trata-se de compreender e explicar como os relatos mentais – nossas
idéias – correspondem ao que se passa verdadeiramente na realidade. Apesar
dessas diferenças, os filósofos retomaram o modo de trabalhar filosoficamente
proposto por Sócrates, Platão e Aristóteles, qual seja, começar pelo exame das
opiniões contrárias e ilusórias para ultrapassá-las em direção à verdade.
Antes de abordar o conhecimento verdadeiro,
Bacon e Descartes examinaram exaustivamente as causas e as formas do erro,
inaugurando um estilo filosófico que permanecerá na Filosofia, isto é, a
análise dos preconceitos e do senso comum.
Bacon elaborou uma teoria conhecida como a crítica
dos ídolos (a palavra ídolo vem do grego eidolon e significa
imagem). Descartes, como já mencionamos, elaborou um método de análise
conhecido como dúvida metódica.
De acordo com Bacon, existem quatro tipos de
ídolos ou de imagens que formam opiniões cristalizadas e preconceitos, que
impedem o conhecimento da verdade:
1. ídolos da caverna: as opiniões que
se formam em nós por erros e defeitos de nossos órgãos dos sentidos. São os
mais fáceis de corrigir por nosso intelecto;
2. ídolos do fórum: são as opiniões que
se formam em nós como conseqüência da linguagem e de nossas relações com os
outros. São difíceis de vencer, mas o intelecto tem poder sobre eles;
3. ídolos do teatro: são as opiniões
formadas em nós em decorrência dos poderes das autoridades que nos impõem seus
pontos de vista e os transformam em decretos e leis inquestionáveis. Só podem
ser refeitos se houver uma mudança social e política;
4. ídolos da tribo: são as opiniões
que se formam em nós em decorrência de nossa natureza humana; esses ídolos são
próprios da espécie humana e só podem ser vencidos se houver uma reforma da
própria natureza humana.
Bacon acreditava que o avanço dos
conhecimentos e das técnicas, as mudanças sociais e políticas e o
desenvolvimento das ciências e da Filosofia propiciariam uma grande reforma do
conhecimento humano, que seria também uma grande reforma na vida humana. Tanto
assim que, ao lado de suas obras filosóficas, escreveu uma obra
filosófico-política, a Nova Atlântida, na qual descreve e narra uma
sociedade ideal e perfeita, nascida do conhecimento verdadeiro e do
desenvolvimento das técnicas.
Descartes localizava a origem do erro em duas
atitudes que chamou de atitudes infantis:
1. a prevenção, que é a facilidade com
que nosso espírito se deixa levar pelas opiniões e idéias alheias, sem se
preocupar em verificar se são ou não verdadeiras. São as opiniões que se
cristalizam em nós sob a forma de preconceitos (colocados em nós por pais,
professores, livros, autoridades) e que escravizam nosso pensamento,
impedindo-nos de pensar e de investigar;
2. a precipitação, que é a facilidade
e a velocidade com que nossa vontade nos faz emitir juízos sobre as coisas
antes de verificarmos se nossas idéias são ou não são verdadeiras. São opiniões
que emitimos em conseqüência de nossa vontade ser mais forte e poderosa do que
nosso intelecto. Originam-se no conhecimento sensível, na imaginação, na
linguagem e na memória.
Como Bacon, Descartes também está convencido
de que é possível vencer esses efeitos, graças a uma reforma do entendimento e
das ciências. (Descartes não pensa na necessidade de mudanças sociais e
políticas, diferindo de Bacon nesse aspecto.) Essa reforma pode ser feita pelo
sujeito do conhecimento, se este decidir e deliberar pela necessidade de
encontrar fundamentos seguros para o saber. Para isso Descartes criou um
procedimento, a dúvida metódica, pela qual o sujeito do conhecimento,
analisando cada um de seus conhecimentos, conhece e avalia as fontes e as
causas de cada um, a forma e o conteúdo de cada um, a falsidade e a verdade de
cada um e encontra meios para livrar-se de tudo quanto seja duvidoso perante o
pensamento. Ao mesmo tempo, o pensamento oferece ao espírito um conjunto de regras
que deverão ser obedecidas para que um conhecimento seja considerado
verdadeiro.
Para Descartes, o conhecimento sensível (isto
é, sensação, percepção, imaginação, memória e linguagem) é a causa do erro e
deve ser afastado. O conhecimento verdadeiro é puramente intelectual, parte das
idéias inatas e controla (por meio de regras) as investigações filosóficas,
científicas e técnicas.
Locke
Locke é o iniciador da teoria do conhecimento
propriamente dita porque se propõe a analisar cada uma das formas de
conhecimento que possuímos, a origem de nossas idéias e nossos discursos, a
finalidade das teorias e as capacidades do sujeito cognoscente relacionadas com
os objetos que ele pode conhecer. Seguindo a trilha que fora aberta por
Aristóteles, Locke também distingue graus de conhecimento, começando pelas
sensações até chegar ao pensamento.
Comparemos o que escreveu Aristóteles, no
início da Metafísica, e o que afirmou Locke, no início do Ensaio
sobre o entendimento humano.
Aristóteles escreveu:
Todos os homens têm, por natureza, o desejo
de conhecer. O prazer causado pelas sensações é a prova disso, pois, mesmo fora
de qualquer utilidade, as sensações nos agradam por si mesmas e, mais do que
todas as outras, as sensações visuais.
Locke afirmou:
Visto que o entendimento situa o homem acima
dos outros seres sensíveis e dá-lhe toda vantagem e todo domínio que tem sobre
eles, seu estudo consiste certamente num tópico que, por sua nobreza, é
merecedor de nosso trabalho de investigá-lo. O entendimento, como o olho, que
nos faz ver e perceber todas as outras coisas, não se observa a si mesmo;
requer arte e esforço situá-lo à distância e fazê-lo seu próprio objeto.
Assim como Aristóteles diferia de Platão,
Locke difere de Descartes.
Platão e Descartes afastam a experiência
sensível ou o conhecimento sensível do conhecimento verdadeiro, que é puramente
intelectual. Aristóteles e Locke consideram que o conhecimento se realiza por
graus contínuos, partindo da sensação até chegar às idéias.
Essa diferença de perspectiva estabelece as
duas grandes orientações da teoria do conhecimento, conhecidas como racionalismo
e empirismo.
Para o racionalismo, a fonte do conhecimento
verdadeiro é a razão operando por si mesma, sem o auxílio da experiência
sensível e controlando a própria experiência sensível.
Para o empirismo, a fonte de todo e qualquer
conhecimento é a experiência sensível, responsável pelas idéias da razão e
controlando o trabalho da própria razão.
Essas diferenças, porém, não impedem que haja
um elemento comum a todos os filósofos a partir da modernidade, qual seja,
tomar o entendimento humano como objeto da investigação filosófica.
Tornar o entendimento objeto para si próprio,
tornar o sujeito do conhecimento objeto de conhecimento para si mesmo é a
grande tarefa que a modernidade filosófica inaugura, ao desenvolver a teoria do
conhecimento. Como se trata da volta do conhecimento sobre si mesmo para
conhecer-se, ou do sujeito do conhecimento colocando-se como objeto para si
mesmo, a teoria do conhecimento é a reflexão filosófica.
A
consciência: o eu, a pessoa, o cidadão e o sujeito
A teoria do conhecimento no seu todo realiza-se
como reflexão do entendimento e baseia-se num pressuposto fundamental: o de que
somos seres racionais conscientes.
O que se entende por consciência?
A capacidade humana para conhecer, para saber
que conhece e para saber o que sabe que conhece. A consciência é um
conhecimento (das coisas e de si) e um conhecimento desse conhecimento
(reflexão).
Do ponto de vista psicológico, a consciência
é o sentimento de nossa própria identidade: é o eu, um fluxo temporal de
estados corporais e mentais, que retém o passado na memória, percebe o presente
pela atenção e espera o futuro pela imaginação e pelo pensamento. O eu é
o centro ou a unidade de todos esses estados psíquicos.
A consciência psicológica ou o eu é
formada por nossas vivências, isto é, pela maneira como sentimos e
compreendemos o que se passa em nosso corpo e no mundo que nos rodeia, assim
como o que se passa em nosso interior. É a maneira individual e própria com que
cada um de nós percebe, imagina, lembra, opina, deseja, age, ama e odeia, sente
prazer e dor, toma posição diante das coisas e dos outros, decide, sente-se
feliz ou infeliz.
Do ponto de vista ético e moral, a
consciência é a espontaneidade livre e racional, para escolher, deliberar e
agir conforme à liberdade, aos direitos alheios e ao dever. É a pessoa,
dotada de vontade livre e de responsabilidade. É a capacidade para compreender
e interpretar sua situação e sua condição (física, mental, social, cultural,
histórica), viver na companhia dos outros segundo as normas e os valores morais
definidos por sua sociedade, agir tendo em vista fins escolhidos por
deliberação e decisão, realizar as virtudes e, quando necessário, contrapor-se
e opor-se aos valores estabelecidos em nome de outros, considerados mais
adequados à liberdade e à responsabilidade.
Do ponto de vista político, a consciência é o
cidadão, isto é, tanto o indivíduo situado no tecido das relações
sociais, como portador de direitos e deveres, relacionando-se com a esfera
pública do poder e das leis, quanto o membro de uma classe social, definido por
sua situação e posição nessa classe, portador e defensor de interesses
específicos de seu grupo ou de sua classe, relacionando-se com a esfera pública
do poder e das leis.
A consciência moral (a pessoa) e a
consciência política (o cidadão) formam-se pelas relações entre as vivências do
eu e os valores e as instituições de sua sociedade ou de sua cultura.
São as maneiras pelas quais nos relacionamos com os outros por meio de
comportamentos e de práticas determinados pelos códigos morais (que definem
deveres, obrigações, virtudes) e políticos (que definem direitos, deveres e
instituições coletivas públicas), a partir do modo como uma cultura e uma
sociedade determinadas definem o bem e o mal, o justo e o injusto, o legítimo e
o ilegítimo, o legal e o ilegal, o privado e o público. O eu é uma
vivência e uma experiência que se realiza por comportamentos; a pessoa e
o cidadão são a consciência como agente (moral e político), como práxis.
Do ponto de vista da teoria do conhecimento,
a consciência é uma atividade sensível e intelectual dotada do poder de
análise, síntese e representação. É o sujeito. Reconhece-se como
diferente dos objetos, cria e descobre significações, institui sentidos,
elabora conceitos, idéias, juízos e teorias. É dotado de capacidade para
conhecer-se a si mesmo no ato do conhecimento, ou seja, é capaz de reflexão. É
saber de si e saber sobre o mundo, manifestando-se como sujeito percebedor,
imaginante, memorioso, falante e pensante. É o entendimento propriamente dito.
A consciência reflexiva ou o sujeito do
conhecimento forma-se como atividade de análise e síntese, de representação
e de significação voltadas para a explicação, descrição e interpretação da
realidade e das outras três esferas da vida consciente (vida psíquica, moral e política),
isto é, da posição do mundo natural e cultural e de si mesma como objetos de
conhecimento. Apóia-se em métodos de conhecer e busca a verdade ou o
verdadeiro. É o aspecto intelectual e teórico da consciência.
Ao contrário do eu, o sujeito do
conhecimento não é uma vivência individual, mas aspira à universalidade, ou
seja, à capacidade de conhecimento que seja idêntica em todos os seres humanos
e com validade para todos os seres humanos, em todos os tempos e lugares.
Assim, por exemplo, João pode gostar de geometria e Paula pode detestar essa
matéria, mas o que ambos sentem não afetam os conceitos geométricos, nem os
procedimentos matemáticos, cujo sentido e valor independem das vivências de
ambos e são o objeto construído ou descoberto pelo sujeito do conhecimento.
Maria pode não saber que existe a física
quântica e pode, ao ser informada sobre ela, não acreditar nela e não gostar da
idéia de que seu corpo seja apenas movimento infinito de partículas invisíveis.
Isso, porém, não afeta a validade e o sentido da ciência quântica, descoberta e
conhecida pelo sujeito. Luíza tem lembranças agradáveis quando vê rosas
amarelas; Antônio, porém, tem péssimas lembranças quando as vê. Porém, ver
flores e cores, perceber qualidades, senti-las afetivamente não depende de que
queiramos ou não vê-las, como não depende do nosso eu percebê-las
espacialmente ou temporalmente. A percepção de cores, de seres espaciais e
temporais se realiza em mim não apenas segundo minhas vivências psicológicas
individuais, mas também segundo leis, normas, princípios de estruturação e
organização das coisas, que são as mesmas para todos os sujeitos percebedores.
É com essa estruturação e organização que lida o sujeito. A vivência é
singular (minha). O conhecimento é universal (nosso, de todos os humanos).
Eu, pessoa, cidadão e sujeito
constituem a consciência como subjetividade ativa, sede da razão e do
pensamento, capaz de identidade consigo mesma, virtude, direitos e verdade.
Subjetividade
e graus de consciência
Embora a subjetividade se manifeste
plenamente como uma atividade que sabe de si mesma, isso não significa que a
consciência esteja sempre alerta e atenta. Quando, por exemplo, recebemos uma
anestesia geral, vamos perdendo gradualmente a consciência, deixamos de ter
consciência de ver, sentir, lembrar. Dependendo da intensidade da dose
aplicada, podemos perder todas as formas de consciência menos, por exemplo, a
auditiva. No entanto, mesmo a consciência auditiva, nessa situação, é fluida,
não parece estar referida a um eu. Quando despertamos à noite, de um
sono profundo e num local que não é nosso quarto, levamos um certo tempo até
sabermos quem somos e onde estamos.
Quando devaneamos ou divagamos, ou sonhamos
de olhos abertos, perdemos a consciência de tudo quanto está à nossa volta e,
muitas vezes, quando “voltamos a nós”, temos um braço ou uma perna adormecidos,
uma queimadura na mão, o rosto queimado de sol ou o corpo molhado de chuva sem
que tivéssemos consciência do que se passava conosco. Situações como essas
indicam que há graus de consciência.
De um modo geral, distinguem-se os seguintes
graus de consciência:
● consciência passiva: aquela na qual
temos uma vaga e uma confusa percepção de nós mesmos e do que se passa à nossa
volta, como no devaneio, no momento que precede o sono ou o despertar, na
anestesia e, sobretudo, quando somos muito crianças ou muito idosos;
● consciência vivida, mas não
reflexiva: é nossa consciência efetiva, que tem a peculiaridade de ser egocêntrica,
isto é, de perceber os outros e as coisas apenas a partir de nossos sentimentos
com relação a eles, como, por exemplo, a criança que bate numa mesa ao tropeçar
nela, julgando que a mesa “fez de propósito” para machucá-la. Nesse grau de
consciência, não conseguimos separar o eu e o outro, o eu e as coisas. É
típico, por exemplo, das pessoas apaixonadas, para as quais o mundo só existe a
partir dos seus sentimentos de amor, ódio, cólera, alegria, tristeza, etc.;
● consciência ativa e reflexiva:
aquela que reconhece a diferença entre o interior e o exterior, entre si e os
outros, entre si e as coisas. Esse grau de consciência é o que permite a
existência da consciência em suas quatro modalidades, isto é, eu, pessoa,
cidadão e sujeito.
Esse último grau de consciência, nas suas
quatro modalidades, é definido pela fenomenologia como consciência
intencional ou intencionalidade, isto é, como “consciência de”. Toda
a consciência, diz a fenomenologia, é sempre consciência de alguma coisa, visa
sempre a alguma coisa, de tal maneira que perceber é sempre perceber alguma
coisa, imaginar é sempre imaginar alguma coisa, lembrar é sempre lembrar alguma
coisa, dizer é sempre dizer alguma coisa, pensar é sempre pensar alguma coisa.
A consciência realiza atos (perceber, lembrar, imaginar, falar,
refletir, pensar) e visa a conteúdos ou significações (o percebido, o
lembrado, o imaginado, o falado, o refletido, o pensado). O sujeito do
conhecimento é aquele que reflete sobre as relações entre atos e significações
e conhece a estrutura formada por eles (a percepção, a imaginação, a memória, a
linguagem, o pensamento).
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