O conhecimento Capítulo 6 O pensamento Pensando
Convite à Filosofia
De Marilena Chaui
Ed. Ática, São Paulo, 2000.
De Marilena Chaui
Ed. Ática, São Paulo, 2000.
Unidade 4
O conhecimento
O conhecimento
Capítulo 6
O pensamento
O pensamento
Pensando…
Certa vez um grego disse: “O pensamento é o passeio da
alma”. Com isso quis dizer que o pensamento é a maneira como nosso espírito parece
sair de dentro de si mesmo e percorrer o mundo para conhecê-lo. Assim como no
passeio levamos nosso corpo a toda parte, no pensamento levamos nossa alma a
toda parte e mais longe do que o corpo, pois a alma não encontra obstáculos
físicos para seu caminhar.
O pensamento é essa curiosa atividade na qual saímos de nós
mesmos sem sairmos de nosso interior. Por isso, outro filósofo escreveu que
pensar é a maneira pela qual sair de si e entrar em si são uma só e mesma
coisa. Como um vôo sem sair do lugar.
Em nosso cotidiano usamos as palavras pensar e pensamento
em sentidos variados e múltiplos. Podemos chegar a uma pessoa amiga, vê-la
silenciosa e dizer-lhe: “Por favor, diga-me seu pensamento, em que você está
pensando?”. Com isso, reconhecemos uma atividade solitária, invisível para nós
e que precisa ser proferida para ser compartilhada.
Outras vezes, porém, podemos dizer a essa mesma pessoa:
“Você pensa que não sei o que você está pensando?”. Agora, damos a entender que
dispomos de sinais – alguma coisa que foi dita, um gesto, um olhar, uma
expressão fisionômica – que nos permitem “ver” o pensamento de alguém e,
portanto, acreditamos que pensar também se traduz em sinais corporais e
visíveis. O pensamento é menos solitário e menos secreto do que se poderia
supor.
Algumas vezes, chegamos para alguém e indagamos: “Como é,
pensou?”, e ouvimos a resposta: “Sim. Vamos fazer o trabalho”. Ou então: “Ainda
estou pensando no assunto. Vamos ver depois”. Nesses casos, pensar é tomado por
nós como sinônimo de deliberação e de decisão, como algo que resulta numa ação.
Muitas vezes, podem dizer-nos: “Você pensa demais, não faz
bem à saúde”. Ou ouvimos a frase: “Ela ficou parada lá na esquina, quieta,
pensando, pensando”. Podemos falar: “Por mais que pense nisso não consigo
acreditar e, quanto mais penso, menos acredito”. Agora, pensar é visto como
preocupação (fazendo mal à saúde), cisma (ficar parada, quieta, cismando),
dúvida (quanto mais penso, menos acredito).
Alguns jornais costumam publicar algo que alguém disse com
o título: “O pensamento do dia é…”, querendo dizer com isso que uma determinada
idéia, definindo algum assunto, foi publicamente anunciada. Essa mesma
identificação entre pensamento e idéia pode aparecer quando, por exemplo, um
crítico literário escreve: “O livro de Fulano tem alguns bons pensamentos, mas
tem outros banais”, classificando idéias em “boas” e “banais”, isto é, umas que
dizem algo novo e interessante e outras que repetem lugares-comuns ou
frivolidades. Supomos, dessa maneira, que há bons e maus pensamentos, tanto
assim que falamos em “pensamento positivo” e em “afastar os maus pensamentos”.
Um professor pode criticar o trabalho de um aluno
dizendo-lhe: “Esse trabalho mostra que você não quis pensar”. Aqui, pensar não
é só ter idéias, mas também algo que se pode querer ou não querer, algo
voluntário e deliberado, uma forma de atenção e concentração. Essa imagem de
concentração aparece, por exemplo, quando alguém se zanga e diz: “Querem, por
favor, fazer silêncio? Não estão vendo que estou pensando?”.
E já mencionamos o célebre “Penso, logo existo” (Cogito,
ergo sum), de Descartes, e a definição do homem como “caniço pensante”,
feita por Pascal. Aqui, pensar e pensamento indicam a própria essência da
natureza humana.
O que dizem os dicionários
Se procurarmos pensar e pensamento nos
dicionários, notaremos que os vários sentidos dados a esses termos recobrem os
exemplos que demos do uso dessas palavras em nosso cotidiano e ainda
acrescentam alguns outros sentidos.
Pensar, dizem os dicionários, significa: 1. aplicar
a atividade do espírito aos elementos fornecidos pelo conhecimento; formar e
combinar idéias; julgar, refletir, raciocinar, especular; 2. exercer a
inteligência; meditar, ver; 3. exercer o espírito ou a atividade consciente de
uma maneira global: sentir, querer, refletir; 4. ter uma opinião, uma
convicção; 5. supor, presumir, crer, admitir, suspeitar, achar; 6. esperar,
tencionar; 7. preocupar-se; 8. avaliar; 9. cismar.
Pensamento, de acordo com os dicionários, significa:
1. o ato de refletir, meditar ou pensar, ou o processo mental que se concentra
em idéias; 2. a atividade de conhecimento ou tendo por objeto o conhecimento;
3. consciência, mente, espírito, entendimento, intelecto, razão; 4. poder de
formular idéias e conceitos; 5. faculdade de pensar logicamente, raciocínio,
ponto de vista, formulação de um juízo; 6. aquilo que é pensado ou o resultado
do ato de pensar: idéia, ponto de vista, opinião, juízo; 7. fantasia, sonho,
devaneio, lembrança, recordação, cuidado, preocupação, expectativa; 8. conjunto
das idéias ou doutrina de um pensador, de uma sociedade, de um grupo, de uma
coletividade.
Assim, no exemplo “Você pensa demais, não é bom para a
saúde”, pensar e pensamento significam preocupação; no exemplo “Por mais que
pense nisso, não acredito que seja assim”, pensar e pensamento significam cisma
e dúvida; no exemplo “Ainda estou pensando no assunto”, pensar e pensamento
significam formar uma opinião ou um ponto de vista; no exemplo “Acabem com esse
barulho, não estão vendo que estou pensando?”, pensar e pensamento significam
atividade mental ou intelectual para formular uma idéia ou um conceito.
Se eu disser: “Penso que ela virá”, estou exprimindo uma
expectativa; se disser: “Penso que você sabe disso”, estou exprimindo uma
suposição; se disser: “Pensei nele a noite inteira, nem pude dormir”, estou
exprimindo preocupação; se disser: “Eu a vi perdida em pensamentos”, quero
dizer que vi alguém cismando, fantasiando, imaginando. Mas se eu disser: “A
teoria da relatividade resulta do trabalho do pensamento de Einstein”, estou
dizendo que o pensamento é uma atividade intelectual de produção de
conhecimentos.
Quando procuramos a origem das palavras pensamento e
pensar, descobrimos que procedem de um verbo latino, o verbo pendere,
que significa: ficar em suspenso, estar ou ficar pendente ou pendurado,
suspender, pesar, pagar, examinar, avaliar, ponderar, compensar, recompensar e
equilibrar.
Pensar, portanto, é suspender o julgamento (até formar uma
idéia ou opinião), pesar (comparar idéias, opiniões, pontos de vista), avaliar
(julgar o valor de uma idéia ou opinião, ou seja, se é verdadeira ou falsa,
justa ou injusta, adequada ou inadequada), examinar (idéias, opiniões, juízos,
pontos de vista), ponderar (isto é, pesar idéias e pontos de vista para
escolher um deles), equilibrar (encontrar o meio-termo entre extremos ou entre
opostos). Pensare, derivando-se de pendere, caracteriza-se mais
como uma atividade sobre idéias, opiniões, juízos e pontos de vista já
existentes do que como criação ou produção de uma idéia ou ponto de vista.
Por esse motivo, quando lemos os textos filosóficos antigos
e modernos, escritos em latim, notamos que não usam pendere e pensare
para dizer pensar, mas empregam dois outros verbos: cogitare e intelligere.
Cogitare significa: considerar atentamente e
meditar. Esse verbo vem do outro, agere, que significa: empurrar para
diante de si, e também do verbo agitare, que significa: empurrar para
frente com força, agitar. Pensar, enquanto cogitare, é colocar diante de
si alguma coisa para considerá-la com atenção ou forçar alguma coisa a ficar
diante de nós para ser examinada.
O verbo intelligere vem da composição de duas outras
palavras: inter, isto é, entre, e legere, que significa: colher,
reunir, recolher, escolher e ler (isto é, reunir as letras com os olhos). Por
isso, intelligere significa: escolher entre, reunir entre vários,
apanhar, aprender, compreender, ler entre, ler dentro de. Donde: conhecer e
entender.
Se reunirmos os vários sentidos dos três verbos – pensare,
cogitare e intelligere -, veremos que pensar e pensamento sempre
significam atividades que exigem atenção: pesar, avaliar, equilibrar, colocar
diante de si para considerar, reunir e escolher, colher e recolher. O
pensamento é, assim, uma atividade pela qual a consciência ou a inteligência
coloca algo diante de si para atentamente considerar, avaliar, pesar,
equilibrar, reunir, compreender, escolher, entender e ler por dentro.
Isso explica todos os sentidos que vimos surgir nos
dicionários da língua portuguesa e nos exemplos que demos: meditar,
concentrar-se, cismar, opinar, ter idéias, compreender as coisas, raciocinar,
formular conceitos, ter um ponto de vista, refletir, avaliar, preocupar-se.
O pensamento é a consciência ou a inteligência saindo de si
(“passeando”) para ir colhendo, reunindo, recolhendo os dados oferecidos pela
experiência, pela percepção, pela imaginação, pela memória, pela linguagem, e
voltando a si, para considerá-los atentamente, colocá-los diante de si, observá-los
intelectualmente, pesá-los, avaliá-los, retirando deles conclusões, formulando
com eles idéias, conceitos, juízos, raciocínios, valores.
O pensamento exprime nossa existência como seres racionais
e capazes de conhecimento abstrato e intelectual, e sobretudo manifesta sua
própria capacidade para dar a si mesmo leis, normas, regras e princípios para
alcançar a verdade de alguma coisa.
Experiências de pensamento
Muitas vezes nos acontece de passarmos horas matutando,
cismando, querendo compreender alguma coisa que nos escapa. Fazemos nossas
atividades de todo dia, mas parecemos distraídos porque nossa atenção está
concentrada noutra parte, naquilo que estamos querendo compreender e não
conseguimos. Cansados, paramos de cismar e de dar atenção ao assunto. De
repente, com susto e alegria, quase gritamos: “Entendi!”. Sentimos o mesmo que
quando completamos um quebra-cabeça, todas as peças em seus devidos lugares, a
figura bem visível diante de nós. Tivemos uma experiência de pensamento.
Outras vezes, assistindo a uma aula, lendo um livro científico,
fazendo um trabalho no laboratório, resolvendo um problema no computador, vamos
acompanhando passo a passo as idéias, os encadeamentos dos raciocínios, as
relações de causa e efeito entre certas coisas, as conseqüências de uma
afirmação e de uma negação e, finalmente, a conclusão a que chegam a aula, o
livro, o trabalho no laboratório ou no computador. Ao término de cada uma
dessas atividades temos consciência de que aprendemos alguma coisa que não
sabíamos e que fizemos um percurso para conhecê-la e compreendê-la. Tivemos uma
experiência de pensamento.
Em certas ocasiões, dialogando com uma outra pessoa, a
conversa vai fazendo surgir idéias nas quais eu nunca havia pensado, ou vai
fazendo com que eu perceba que algumas idéias, que julgava claras e corretas,
não são assim, são confusas e incorretas. Falando com a outra pessoa, vou
desenvolvendo idéias que eu nem sabia que tinha e que foram despertadas em mim
por alguma coisa que o outro me disse. Clarifico algumas, corrijo outras,
abandono outras tantas, descubro novas, tiro conclusões ou me encho de
perplexidade. Tive uma experiência de pensamento.
Quando pensamos, pomos em movimento o que nos vem da
percepção, da imaginação, da memória; apreendemos o sentido das palavras;
encadeamos e articulamos significações, algumas vindas de nossa experiência
sensível, outras de nosso raciocínio, outras formadas pelas relações entre
imagens, palavras, lembranças e idéias anteriores. O pensamento apreende,
compara, separa, analisa, reúne, ordena, sintetiza, conclui, reflete, decifra,
interpreta, interroga.
A inteligência
A psicologia costuma definir a inteligência por sua função,
considerando-a uma atividade de adaptação ao ambiente, através do
estabelecimento de relações entre meios e fins para a solução de um problema ou
de uma dificuldade. Essa definição concebe, portanto, a inteligência como uma
atividade eminentemente prática e a distingue de duas outras que também possuem
finalidade adaptativa e relacionam meios e fins: o instinto e o hábito.
Compartilhamos o instinto e o hábito com os animais. O
instinto, por exemplo, nos leva automaticamente a contrair a pupila quando
nossos olhos estão muito expostos à luz e a dilatá-la quando estamos na
escuridão; leva-nos a afastar rapidamente a mão de uma superfície muito quente
que possa queimar-nos. O instinto é inato. Ao contrário, o hábito é adquirido,
mas, como o instinto, tende a realizar-se automaticamente. Por exemplo, quem
adquire o hábito de dirigir um veículo, muda as marchas, pisa na embreagem, no
acelerador ou no freio sem precisar pensar nessas operações; quem aprende a
patinar ou a nadar, realiza maquinalmente os gestos necessários, depois de
adquiri-los.
Instinto e hábito são formas de comportamento cuja
principal característica é serem especializados ou específicos: a abelha sabe
fazer a colméia, mas é incapaz de fazer o ninho; o joão-de-barro constrói uma
“casa”, mas é incapaz de fazer uma colméia; posso aprender a nadar, mas esse
hábito não me faz saber andar de bicicleta.
O instinto e o hábito especializam as funções, os meios e
os fins e não possuem flexibilidade para mudá-los ou para adaptar um novo meio
para um novo fim, nem para usar meios novos para um fim já existente. A
tendência do instinto ou do hábito é a repetição e o automatismo das respostas
aos problemas.
A inteligência difere do instinto e do hábito por sua
flexibilidade, pela capacidade de encontrar novos meios para um novo fim, ou de
adaptar meios existentes para uma finalidade nova, pela possibilidade de
enfrentar de maneira diferente situações novas e inventar novas soluções para
elas, pela capacidade de escolher entre vários meios possíveis e entre vários
fins possíveis. Nesse nível prático, a inteligência é capaz de criar instrumentos,
isto é, de dar uma função nova e um sentido novo a coisas já existentes, para
que sirvam de meios a novos fins.
Compartilhamos a inteligência prática com alguns animais,
especialmente com os chimpanzés. O psicólogo Köhler fez experiências com alguns
desses animais e demonstrou que eram capazes de comportamentos inteligentes:
● colocado um chimpanzé numa pequena sala, põe-se a seu
lado um certo número de caixotes e prende-se uma banana no teto. Após saltos
instintivos (infrutíferos) para a agarrar a banana, o chimpanzé consegue
empilhar os caixotes, subir neles e agarrar o alimento;
● colocado um chimpanzé numa pequena sala, nas mesmas
circunstâncias anteriores, mas oferecendo bambus em vez de caixotes, o
chimpanzé termina por encaixar os bambus uns nos outros, formando um
instrumento para apanhar a banana.
Os gestaltistas explicam o comportamento do chimpanzé
mostrando que ele se comporta percebendo um campo perceptivo no qual a banana,
os caixotes e os bambus formam uma totalidade e se relacionam enquanto partes
de um todo, de modo que os caixotes e os bambus são percebidos como parte da
paisagem e como meios para um fim (agarrar a banana).
O fato de que o chimpanzé percebe um campo perceptivo, e
não objetos isolados, é demonstrado quando, no lugar dos bambus, são colocados
arames, que o animal enganchará uns nos outros para colher a fruta; ou quando,
no lugar dos caixotes, são colocadas mesinhas de tamanhos diferentes, que podem
ser empilhadas pelo animal para agarrar a banana.
No entanto, observa-se algo interessante. Depois de comer a
banana, o chimpanzé nada faz com os caixotes, os bambus, os arames ou as mesas.
Ficam à sua volta como objetos sem sentido. Ao contrário, uma criança nas
mesmas circunstâncias, depois de conseguir apanhar um doce, por exemplo,
examinará os objetos. Se descobrir que são desmontáveis, ela tentará fazer, com
os caixotes e as mesas, uma escada, e com os bambus e os arames, uma rede.
Essa diferença nos comportamentos do chimpanzé e da criança
revela que esta última ultrapassa a situação imediata de fome e de uso direto
dos objetos e prevê uma situação futura para a qual encontra uma solução,
transformando os objetos em instrumentos propriamente ditos.
A criança antecipa uma situação e transforma
os dados de uma situação presente, fabricando meios para certos fins que ainda
estão ausentes. Ela se lembra da situação passada, espera a
situação futura, organiza a situação presente a partir dos dados
lembrados, esperados e percebidos, imagina uma situação nova e responde
a ela, mesmo que ainda esteja ausente.
A criança se relaciona com o tempo e transforma seu espaço
por essa relação temporal. A criança representa seu mundo e atua
praticamente sobre ele. Sua inteligência difere, portanto, da do animal.
Inteligência e linguagem
Não somos dotados apenas de inteligência prática ou
instrumental, mas também de inteligência teórica e abstrata. Pensamos.
O exercício da inteligência como pensamento é inseparável
da linguagem, como já vimos, pois a linguagem é o que nos permite estabelecer
relações, concebê-las e compreendê-las. Graças às significações escada e
rede, a criança pode pensar nesses objetos e fabricá-los.
A linguagem articula percepções e memórias, percepções e
imaginações, oferecendo ao pensamento um fluxo temporal que conserva e
interliga as idéias.
O psicólogo Piaget, estudando a gênese da inteligência nas
crianças, mostrou como a aquisição da linguagem e a do pensamento caminham
juntas. Assim, por exemplo, uma criança de quatro anos ainda não é capaz de
pensar relações reversíveis ou recíprocas porque não domina a linguagem desse
tipo de relações. Se se perguntar a ela: “Você tem um irmão?”, ela responderá:
“Sim”. Se continuarmos a perguntar: “Quem é o seu irmão?”, ela responderá:
“Pedrinho”. No entanto, se lhe perguntarmos: “Pedrinho tem uma irmã?”, ela
dirá: “Não”, pois a linguagem que ela possui permite-lhe estabelecer relações
entre ela e o mundo, mas não entre o mundo e ela.
A inteligência humana, enquanto atividade mental e de
linguagem, pode ser definida como a capacidade para enfrentar ou colocar diante
de si problemas práticos e teóricos, para os quais encontra, elabora ou concebe
soluções, seja pela criação de instrumentos práticos (as técnicas), seja pela
criação de significações (idéias e conceitos). Caracteriza-se pela
flexibilidade, plasticidade e inovação, bem como pela possibilidade de transformar
a própria realidade (trabalho, artes, técnicas, ações políticas, etc.). A
inteligência se realiza, portanto, como conhecimento e ação.
O conhecimento inteligente apreende o sentido das palavras,
interpreta-o, inventa novos sentidos para palavras antigas ou cria novas
palavras para novos sentidos. O movimento de conhecer é, pois, um movimento
cujo corpo é a linguagem. Graças a ela, compartilhamos com outros os nossos
conhecimentos e recebemos de outros os conhecimentos.
Comunicação, informação, memória cultural, transmissão,
inovação e ruptura: eis o que a linguagem permite à inteligência. Clarificação,
organização, ordenamento, análise, interpretação, compreensão, síntese,
articulação: eis o que a inteligência oferece à linguagem.
Inteligência e pensamento
A inteligência colhe, recolhe e reúne os dados oferecidos
pela percepção, pela imaginação, pela memória e pela linguagem, formando redes
de significações com as quais organizamos e ordenamos nosso mundo e nossa vida,
recebendo e doando sentido a eles. O pensamento, porém, vai além do trabalho da
inteligência: abstrai (ou seja, separa) os dados das condições imediatas de
nossa experiência e os elabora sob a forma de conceitos, idéias e juízos,
estabelecendo articulações internas e necessárias entre eles pelo raciocínio
(indução e dedução), pela análise e pela síntese. Formula teorias, procura prová-las
e verificá-las, pois está voltado para a verdade do conhecimento.
Um conceito ou uma idéia é uma rede de
significações que nos oferece: o sentido interno e essencial daquilo a que se
refere; os nexos causais ou as relações necessárias entre seus elementos, de
sorte que por eles conhecemos a origem, os princípios, as conseqüências, as
causas e os efeitos daquilo a que se refere. O conceito ou idéia nos oferece a
essência-significação necessária de alguma coisa, sua origem ou causa, suas
conseqüências ou seus efeitos, seu modo de ser e de agir.
Assim, por exemplo, vejo rosas, margaridas, girassóis. Mas
concebo pelo pensamento o conceito ou a idéia universal de flor. Sinto corpos
quentes, mornos, frios, gelados, sinto o frio da neve, o calor do Sol, a
tepidez agradável da água do mar ou da piscina. Mas concebo pelo pensamento o
conceito ou idéia de temperatura. Vejo uma bola, no conjunto musical toco um
triângulo, escrevo sobre uma mesa cujo tampo tem quatro lados iguais. Mas pelo
pensamento concebo o conceito ou a idéia de esfera ou círculo, de triângulo, de
quadrado. Vou além: pelo puro pensamento, formulo o conceito de figura
geométrica e das leis que a regem, elaborando axiomas, postulados e teoremas.
Os conceitos ou idéias são redes de significações cujos
nexos um ligações são expressos pelo pensamento através dos juízos[i],
pelos quais estabelecemos os elos internos e necessários entre um ser e as
qualidades, as propriedades, os atributos que lhe pertencem, assim como aqueles
predicados que lhe são acidentais e que podem ser retirados sem que isso afete
o sentido e a realidade de um ser.
Um conjunto de juízos constitui uma teoria, quando:
● estabelece com clareza um campo de objetos e os
procedimentos para conhecê-los e enunciá-los;
● organizam-se e ordenam-se os conceitos;
● articulam-se e demonstram-se os juízos, verificando seu
acordo com regras e princípios de racionalidade e demonstração.
Teoria é explicação, descrição e interpretação geral das
causas, formas, modalidades e relações de um campo de objetos, conhecidos
graças a conhecimentos específicos, próprios à natureza dos objetos
investigados.
O pensamento elabora teorias, ou seja, uma explicação ou
interpretação intelectual de um conjunto de fenômenos e significações (objetos,
fatos, situações, acontecimentos), que estabelece a natureza, o valor e a
verdade de tais fenômenos. Por isso falamos em teoria da relatividade, teoria
genética, teoria aristotélica, teoria psicanalítica, etc.
Uma teoria pode ou não nascer diretamente de uma prática e
ter ou não uma aplicação prática direta, mas não é a prática que permite
determinar a verdade ou falsidade teórica e sim critérios internos à própria
teoria (seja sua correspondência com as coisas teorizadas, seja a coerência
interna de seus argumentos, seus raciocínios, suas demonstrações e suas provas,
seja, enfim, a consistência lógica de suas significações). A prática orienta o
trabalho teórico, verifica suas conclusões, mas não determina sua verdade ou
falsidade.
O pensamento propõe e elabora teorias e cria métodos.
A necessidade do método
A palavra método vem do grego, methodos, composta de
meta: através de, por meio de, e de hodos: via, caminho. Usar um
método é seguir regular e ordenadamente um caminho através do qual uma certa
finalidade ou um certo objetivo é alcançado. No caso do conhecimento, é o
caminho ordenado que o pensamento segue por meio de um conjunto de regras e
procedimentos racionais, com três finalidades:
1. conduzir à descoberta de uma verdade até então
desconhecida;
2. permitir a demonstração e a prova de uma verdade já
conhecida;
3. permitir a verificação de conhecimentos para averiguar
se são ou não verdadeiros.
O método é, portanto, um instrumento racional para
adquirir, demonstrar ou verificar conhecimentos.
Por que se sente a necessidade de um método? Porque, como
vimos, o erro, a ilusão, o falso, a mentira rondam o conhecimento, interferem
na experiência e no pensamento. Para dar segurança ao conhecimento, o
pensamento cria regras e procedimentos que permitam ao sujeito cognoscente
aferir e controlar todos os passos que realiza no conhecimento de algum objeto
ou conjunto de objetos.
A Filosofia conheceu diferentes concepções de método.
Platão, por exemplo, considerava que o melhor caminho para
o conhecimento verdadeiro era o que permitia ao pensamento libertar-se do
conhecimento sensível (crenças, opiniões), isto é, das imagens e aparências das
coisas. Atribuía esse papel liberador à discussão racional, sob a forma do
diálogo.
No diálogo, os interlocutores, guiados pelas perguntas do
filósofo (no caso, Sócrates), examinam e discutem opiniões que cada um deles
possui sobre alguma coisa; descobrem que suas opiniões são contraditórias e não
levam a conhecimento algum. Aceitam abandoná-las e conseguem, pouco a pouco,
chegar à idéia universal ou à essência da coisa procurada. Por se tratar de um
confronto entre imagens e opiniões contrárias ou contraditórias, esse método ou
caminho era chamado por Platão de dialética (discussão de teses
contrárias e em conflito ou oposição).
Aristóteles, no entanto, considerou a dialética inadequada
ao pensamento, pois, dizia ele, tal procedimento lida com meras opiniões
prováveis, não oferecendo qualquer garantia de que tenhamos superado o conflito
de opiniões e alcançado a essência verdadeira da coisa investigada. Por esse
motivo, definiu o procedimento filosófico-científico como um método
demonstrativo que se realiza por meio de silogismos. O silogismo é um
conjunto de três juízos ou proposições que permite obter uma conclusão
verdadeira. Trata-se de um método dedutivo no qual, de duas premissas, deduz-se
uma conclusão. Por exemplo:
Todos os homens são mortais.
Sócrates é homem.
Logo, Sócrates é mortal.
Sócrates é homem.
Logo, Sócrates é mortal.
Aristóteles considerava, porém, que os objetos que são
conhecidos por experiência, e não só pelo puro pensamento, deveriam seguir um
método indutivo, no qual o silogismo seria o resultado final conseguido pelo
conhecimento.
Durante a modernidade (isto é, a partir do século XVII), a
necessidade de um método tornou-se ainda mais imperiosa do que antes, pois,
como vimos, o sujeito do conhecimento não sabe se pode alcançar a verdade.
O sujeito do conhecimento descobre-se como uma consciência
que parece não poder contar com o auxílio do mundo para guiá-lo, desconfia dos
conhecimentos sensíveis e dos conhecimentos herdados. Está só. Conta apenas com
seu próprio pensamento. Separado do mundo, isolado com suas percepções,
opiniões, idéias, sua solidão torna indispensável um método que possa guiar o
pensamento em direção aos conhecimentos verdadeiros e distingui-los dos falsos.
Eis porque Descartes escreve o Discurso do método e as Regras para a
direção do espírito. Sobre o método, diz ele, na regra IV das Regras:
Por método, entendo regras certas e fáceis, graças às quais
todos os que as observem exatamente jamais tomarão como verdadeiro aquilo que é
falso e chegarão, sem se cansar com esforços inúteis e aumentando
progressivamente sua ciência, ao conhecimento verdadeiro de tudo o que lhes é
possível esperar.
Descartes enuncia, portanto, as três principais
características das regras do método:
1. certas (o método dá segurança ao pensamento);
2. fáceis (o método economiza esforços inúteis); e
3. que permitam alcançar todos os conhecimentos possíveis
para o entendimento humano.
Por sua vez, Francis Bacon definiu o método como o modo
seguro e certo de “aplicar a razão à experiência”, isto é, de aplicar o
pensamento lógico aos dados oferecidos pelo conhecimento sensível.
O método, nas várias formulações que recebeu no correr da
história da Filosofia e das ciências, sempre teve o papel de um regulador
do pensamento, isto é, de aferidor e avaliador das idéias e teorias: guia o
trabalho intelectual (produção das idéias, dos experimentos, das teorias) e
avalia os resultados obtidos.
Desde Aristóteles, a Filosofia considera que, ao lado de um
método geral que todo e qualquer conhecimento deve seguir, tanto para a
aquisição quanto para a demonstração e verificação de verdades, outros métodos
particulares são necessários, pois os objetos a serem conhecidos também exigem
métodos que estejam em conformidade com eles e, assim, haverá diferentes
métodos conforme a especificidade do objeto a ser conhecido. Dessa maneira, são
diferentes entre si os métodos da geometria e da física, da biologia e da
sociologia, da história e da química, e assim por diante.
É interessante notar, todavia, que, em certos períodos da
história da Filosofia e das ciências, chegou-se a pensar num método único que
ofereceria os mesmos princípios e as mesmas regras para todos os campos do
conhecimento. Assim, por exemplo, Galileu julgou que o método matemático
deveria ser usado em todos os conhecimentos da Natureza, pois, dizia ele, “A
Natureza é um livro escrito em caracteres matemáticos”.
Descartes, indo mais longe que Galileu, julgou que um só e
mesmo método deveria ser empregado pela Filosofia e por todas as ciências, uma mathesis
universalis, ou o conhecimento da ordem necessárias das idéias,
válida para todos os objetos de conhecimento. Conhecer seria ordenar e encadear
em nexos contínuos as idéias referentes a um objeto e tal procedimento deveria
ser o mesmo em todos os conhecimentos porque esse é o modo próprio do
pensamento, seja qual for o objeto a ser conhecido.
Os filósofos e cientistas do final do século XIX também
afirmavam que um método único deveria ser seguido. Entusiasmados com os
desenvolvimentos da física, julgaram que todos os campos do saber deveriam
empregar o método usado pela “ciência da Natureza”, mesmo quando o objeto fosse
o homem. Agora, não era tanto a idéia de ordenamento interno das idéias que
levava à defesa de um único método de conhecimento, mas a idéia da causalidade
ou de explicação causal de todos os fatos, fossem eles naturais ou humanos.
Hoje, porém, sobretudo com a fenomenologia de Husserl e com
a corrente do pensamento conhecida como estruturalismo, considera-se que cada
campo do conhecimento deva ter seu método próprio, determinado pela natureza do
objeto, pela forma como o sujeito do conhecimento pode aproximar-se desse
objeto e pelo conceito de verdade que cada esfera do conhecimento define para
si própria.
Assim, por exemplo, considera-se o método matemático, isto
é, dedutivo, próprio para objetos que existem apenas idealmente e que
são construídos inteiramente pelo nosso pensamento; ao contrário, o método
experimental, isto é, indutivo, é próprio das ciências naturais, que
observam seus objetos e realizam experimentos.
Já as ciências humanas têm métodos de compreensão e de
interpretação do sentido das ações, das práticas, dos comportamentos,
das instituições sociais e políticas, dos sentimentos, dos desejos, das
transformações históricas, pois o homem, objeto dessas ciências, é um ser
histórico-cultural que produz as instituições e o sentido delas. Tal sentido é
o que precisa ser conhecido.
No caso das ciências exatas (as matemáticas), o método é
chamado axiomático, isto é, baseia o conhecimento num conjunto de termos
primitivos e de axiomas, que são o ponto de partida da construção e
demonstração dos objetos.
No caso das ciências naturais (física, química, biologia,
etc.), o método é chamado experimental e hipotético.
Experimental, porque se baseia em observações e em experimentos, tanto para
formular quanto para verificar as teorias. Hipotético, porque os cientistas
partem de hipóteses sobre os objetos que guiam os experimentos e a avaliação
dos resultados.
No caso das ciências humanas (psicologia, sociologia,
antropologia, história, etc.), o método é chamado compreensivo-interpretativo,
porque seu objeto são as significações ou os sentidos dos comportamentos, das
práticas e das instituições realizadas ou produzidas pelos seres humanos.
Quanto à Filosofia, embora os filósofos tenham oscilado
entre vários métodos possíveis, atualmente quatro traços são comuns aos
diferentes métodos filosóficos:
1. o método é reflexivo – parte da auto-análise ou
do autoconhecimento do pensamento;
2. é crítico – investiga os fundamentos e as
condições necessárias da possibilidade do conhecimento verdadeiro, da ação
ética, da criação artística e da atividade política;
3. é descritivo – descreve as estruturas internas ou
essências de cada campo de objetos do conhecimento e das formas de ação humana;
4. é interpretativo – busca as formas da linguagem e
as significações ou os sentidos dos objetos, dos fatos, das práticas e das
instituições, suas origens e transformações.
Pensamento mítico e pensamento lógico
No capítulo anterior, vimos que a língua grega possuía duas
palavras para referir-se à linguagem: mythos e logos. Vimos
também, tanto no estudo da linguagem quanto no da inteligência, que falar e
pensar são inseparáveis. Por isso mesmo, podemos referir-nos a duas modalidades
do pensamento, conforme predomine o mythos ou o logos.
A tradição filosófica, sobretudo a partir do século XVIII
(com a filosofia da Ilustração) e do século XIX (com a filosofia da história de
Hegel e o positivismo de Comte), afirmava que do mito à lógica havia uma
evolução do espírito humano, isto é, o mito era uma fase ou etapa do espírito
humano e da civilização que antecedia o advento da lógica ou do pensamento
lógico, considerado a etapa posterior e evoluída do pensamento e da
civilização. Essa tradição filosófica fez crer que o mito pertenceria a
culturas “inferiores”, “primitivas” ou “atrasadas”, enquanto o pensamento
lógico ou racional pertenceria a culturas “superiores”, “civilizadas” e
“adiantadas”.
Essa separação temporal e evolutiva de duas modalidades de
pensamento fazia com que se julgasse a presença, em nossas sociedades, de
explicações míticas (isto é, as religiões, a literatura, as artes) como uma
espécie de “resíduo” ou “resto” de uma fase passada da evolução da humanidade,
destinada a desaparecer com a plena evolução da racionalidade científica e
filosófica.
Hoje, porém, sabe-se que a concepção evolutiva está
equivocada. O pensamento mítico pertence ao campo do pensamento simbólico e da
linguagem simbólica, que coexistem com o campo do pensamento e da linguagem
conceituais. Duas linhas de estudos mostraram essa coexistência, embora essas
duas modalidades de pensamento e de linguagem sejam não só diferentes, mas
também, freqüentemente, contrárias e opostas.
A primeira linha vem da antropologia social, que estuda os
mitos das sociedades ditas selvagens e também as mitologias de nossas
sociedades, ditas civilizadas. Os antropólogos mostraram que, no caso de nossas
sociedades, a presença simultânea do conceitual e do mítico decorre do modo
como a imaginação social transforma em mito aquilo que o pensamento conceitual
elabora nas ciências e na Filosofia. Basta ver o caráter mágico-maravilhoso
dado aos satélites e computadores para vermos a passagem da ciência ao mito.
A segunda linha vem da neurologia e da análise da anatomia
e da fisiologia do cérebro humano, mostrando que esse órgão possui duas partes
ou dois hemisférios, num deles localizando-se a linguagem e o pensamento
simbólicos e noutro, a linguagem e o pensamento conceituais. Certas pessoas,
como os artistas, desenvolvem mais o hemisfério simbólico, enquanto outras,
como os cientistas, desenvolvem mais o hemisfério conceitual e lógico.
Assim, a predominância de uma ou outra forma do pensamento
depende, por um lado, das tendências pessoais e da história da vida dos
indivíduos e, de outro lado, do modo como uma sociedade ou uma cultura recorrem
mais a uma do que à outra forma para interpretar a realidade, intervir no mundo
e explicar-se a si mesma.
Numa passagem célebre de uma de suas obras, Marx dizia que
o mito de Zeus (portador de raios, trovões e tempestades) não mais poderia
funcionar numa sociedade que inventou o pára-raios, isto é, descobriu
cientificamente a eletricidade. Mas o próprio Marx mostrou como tal sociedade
cria novos mitos, adaptados à era da máquina e da tecnologia.
Como o mito funciona
O antropólogo Claude Lévi-Strauss estudou o “pensamento
selvagem” para mostrar que os chamados selvagens não são atrasados nem
primitivos, mas operam com o pensamento mítico.
O mito e o rito, escreve Lévi-Strauss, não são lendas nem
fabulações, mas uma organização da realidade a partir da experiência sensível
enquanto tal. Para explicar a composição de um mito, Lévi-Strauss se refere a
uma atividade que existe em nossa sociedade e que, em francês, se chama bricolage.
Que faz um bricoleur, ou seja, quem pratica bricolage?
Produz um objeto novo a partir de pedaços e fragmentos de outros objetos. Vai
reunindo, sem um plano muito rígido, tudo o que encontra e que serve para o
objeto que está compondo. O pensamento mítico faz exatamente a mesma coisa,
isto é, vai reunindo as experiências, as narrativas, os relatos, até compor um
mito geral. Com esses materiais heterogêneos produz a explicação sobre a origem
e a forma das coisas, suas funções e suas finalidades, os poderes divinos sobre
a Natureza e sobre os humanos. O mito possui, assim, três características
principais:
1. função explicativa: o presente é explicado por
alguma ação passada cujos efeitos permaneceram no tempo. Por exemplo, uma
constelação existe porque, no passado, crianças fugitivas e famintas morreram
na floresta e foram levadas ao céu por uma deusa que as transformou em
estrelas; as chuvas existem porque, nos tempos passados, uma deusa apaixonou-se
por um humano e, não podendo unir-se a ele diretamente, uniu-se pela tristeza,
fazendo suas lágrimas caírem sobre o mundo, etc.;
2. função organizativa: o mito organiza as relações
sociais (de parentesco, de alianças, de trocas, de sexo, de idade, de poder,
etc.) de modo a legitimar e garantir a permanência de um sistema complexo de
proibições e permissões. Por exemplo, um mito como o de Édipo[ii]
existe (com narrativas diferentes) em quase todas as sociedades selvagens e tem
a função de garantir a proibição do incesto, sem a qual o sistema
sociopolítico, baseado nas leis de parentesco e de alianças, não pode ser
mantido;
3. função compensatória: o mito narra uma situação
passada, que é a negação do presente e que serve tanto para compensar os
humanos de alguma perda como para garantir-lhes que um erro passado foi
corrigido no presente, de modo a oferecer uma visão estabilizada e regularizada
da Natureza e da vida comunitária.
Por exemplo, entre os mitos gregos, encontra-se o da origem
do fogo, que Prometeu roubou do Olimpo para entregar aos mortais e
permitir-lhes o desenvolvimento das técnicas. Numa das versões desse mito,
narra-se que Prometeu disse aos homens que se protegessem da cólera de Zeus
realizando o sacrifício de um boi, mas que se mostrassem mais astutos do que
esse deus, comendo as carnes e enviando-lhe as tripas e gorduras. Zeus
descobriu a artimanha e os homens seriam punidos com a perda do fogo se
Prometeu não lhes ensinasse uma nova artimanha: colocar perfumes e incenso nas
partes dedicadas ao deus.
Com esse mito, narra-se o modo como os humanos se
apropriaram de algo divino (o fogo) e criaram um ritual (o sacrifício de um
animal com perfumes e incenso) para conservar o que haviam roubado dos deuses.
Como opera o pensamento mítico?
Antes de tudo, pela reunião de heterogêneos. O mito reúne,
junta, relaciona e faz elementos diferentes e heterogêneos agirem uns sobre os
outros. Por exemplo, corpos de crianças são estrelas, lágrimas de uma deusa são
chuva, o dia é o carro do deus Apolo, a noite é o manto de uma deusa, o tempo é
um deus (na mitologia grega, Cronos), etc.
Em segundo lugar, o mito organiza a realidade, dando às
coisas, aos fatos, às instituições um sentido analógico e metafórico, isto é,
uma coisa vale por outra, substitui outra, representa outra. No mito de Édipo,
por exemplo, os pés e o modo de andar têm um significado analógico, metafórico
e simbólico muito preciso. Labdáco, avô de Édipo, quer dizer coxo; Laio,
pai de Édipo, quer dizer pé torto; Édipo quer dizer pé inchado.
Essa referência aos pés e ao modo de andar é uma referência
da relação dos humanos com o solo e, portanto, com a terra, e simboliza ou
metaforiza uma questão muito grave: os humanos nasceram da terra ou da união de
um homem e de uma mulher? Se da terra, deveriam ser imortais. No entanto,
morrem. Para exprimir a angústia de serem mortais e que os humanos, portanto,
nasceram de um homem e de uma mulher e não da terra, o mito simboliza a
mortalidade através da dificuldade para se relacionar com a terra, isto é, para
andar (coxo, torto, inchado). Para exprimir a dificuldade de aceitar uma origem
humana mortal, o mito simboliza a fragilidade das leis humanas fazendo Laio
mandar matar seu filho Édipo, Édipo assassinar seu pai Laio e casar-se com sua
mãe, Jocasta.
Em terceiro lugar, o mito estabelece relações entre os
seres naturais e humanos, seja fazendo humanos nascerem, por exemplo, de
animais, seja fazendo os astros decidirem a sorte e o destino dos humanos (como
na astrologia), seja fazendo cores, metais e pedras definirem a natureza de um
humano (como a magia, por exemplo).
Coisas e humanos se relacionam por participação, simpatia,
antipatia, por formas secretas de ação à distância. O mundo é um tecido de
laços e vínculos secretos que precisam ser decifrados e sobre os quais os
homens podem adquirir algum poder por meio da imitação (vestir peles de
animais, fabricar talismãs, ficar em certas posições, plantar fazendo certos
gestos, pronunciar determinadas palavras). O mito decifra o secreto. O rito
imita o poder.
Analogias e metáforas formam símbolos, isto é, imagens
carregadas e saturadas de sentidos múltiplos e simultâneos, servindo para
explicar coisas diferentes ou para substituir uma coisa por outra. Assim, por
exemplo, o fogo pode simbolizar um deus, uma paixão, como o amor e a cólera
(porque são ardentes), o conhecimento (porque este é uma iluminação), a
purificação de alguma coisa (como na alquimia), o poder sobre a Natureza
(porque permite o desenvolvimento das técnicas), a diferença entre os animais e
os homens (porque estes cozem os alimentos enquanto aqueles os comem crus),
etc.
A peculiaridade do símbolo mítico está no fato de ele encarnar
aquilo que ele simboliza. Ou seja, o fogo não representa alguma coisa,
mas é a própria coisa simbolizada: é deus, é amor, é guerra, é
conhecimento, é pureza, é fabricação e purificação, é o humano.
O fato de o símbolo mítico não representar, mas encarnar
aquilo que é significado por ele, leva a dizer (como faz Lévi-Strauss) que o
pensamento mítico é um pensamento sensível e concreto, um pensamento onde
imagens são coisas e onde coisas são idéias, onde as palavras dão existência ou
morte às coisas (como vimos ao estudar a palavra mágica e a palavra-tabu).
Como funciona o pensamento conceitual
O pensamento conceitual ou lógico opera de maneira
diferente e mesmo oposta à do pensamento mítico. A primeira e fundamental
diferença está no fato de que enquanto o pensamento mítico opera por bricolage
(associação dos fragmentos heterogêneos), o pensamento conceitual opera por
método (procedimento lógico para a articulação racional entre elementos
homogêneos). Dessa diferença resultam outras:
● um conceito ou uma idéia não é uma imagem nem um símbolo,
mas uma descrição e uma explicação da essência ou natureza própria de um ser,
referindo-se a esse ser e somente a ele;
● um conceito ou uma idéia não são substitutos para as
coisas, mas a compreensão intelectual delas;
● um conceito ou uma idéia não são formas de participação
ou de relação de nosso espírito em outra realidade, mas são resultado de uma
análise ou de uma síntese dos dados da realidade ou do próprio pensamento;
● um juízo e um raciocínio não permanecem no nível da
experiência, nem organizam a experiência nela mesma, mas, partindo dela, a
sistematizam em relações racionais que a tornam compreensível do ponto de vista
lógico;
● um juízo e um raciocínio buscam as causas universais e
necessárias pelas quais uma realidade é tal como é, distinguindo o modo como
ela nos aparece do modo como é em si mesma; as causas e os efeitos são homogêneos,
isto é, são de mesma natureza;
● um juízo e um raciocínio estudam e investigam a diferença
entre nossas vivências subjetivas, pessoais e coletivas, e os conhecimentos
gerais e objetivos, que são de todos e de ninguém em particular. Estabelecem a
diferença entre vivências subjetivas e a estrutura objetiva do pensamento em
geral;
● o pensamento lógico submete seus procedimentos a métodos,
isto é, a regras de verificação e de generalização dos conhecimentos
adquiridos; a regras de ordenamento e sistematização dos procedimentos e dos
resultados, de modo que um conhecimento novo não pode simplesmente
acrescentar-se aos anteriores (como no bricolage), mas só se junta a
eles se obedecer a certas regras e princípios intelectuais. Assim, por exemplo,
a teoria física elaborada por Aristóteles não pode ser acrescida pela de
Galileu, pois são contrárias; do mesmo modo, a física de Galileu e de Newton
não podem ser acrescentadas à teoria da relatividade, mas podem apenas ser
consideradas um caso especial da física, quando os objetos são macroscópicos e
quando a separação entre o observador e o observado são possíveis.
O pensamento lógico ou racional (ou o pensamento objetivo)
opera de acordo com os princípios de identidade, contradição, terceiro
excluído, razão suficiente e causalidade; distingue verdades de fato e verdades
de razão; diferencia intuição, dedução, indução e abdução; distingue análise e
síntese; diferencia reflexão e verificação, teoria e prática, ciência e
técnica.
Se compararmos a explicação cosmogônica e a cosmológica da
realidade, tais como foram elaboradas na Grécia, perceberemos melhor a
diferença entre as duas modalidades de pensamento.
O pensamento cosmogônico narrava a origem da
Natureza através de genealogias divinas: as forças e os seres naturais estavam
personalizados e simbolizados pelos deuses, titãs e heróis, cujas relações
sexuais davam origem às coisas, aos homens, às estações do ano, ao dia e à
noite, às colheitas, à sociedade. Suas paixões não correspondidas se exprimiam
por raios, trovões, tempestades, tufões, desertos. Seus amores e desejos
realizados manifestavam-se na abundância da primavera, das colheitas, da
procriação dos animais.
O pensamento cosmológico explicava a origem da
Natureza pela existência de um ou alguns elementos naturais (terra-seco,
água-úmido, ar-frio, fogo-quente), que, por sua força interna natural, se
transformavam, dando origem a todas as coisas e aos homens. Os primeiros
filósofos consideravam os elementos originários como forças divinas, mas já não
eram personalizadas, nem sua ação explicada por desejos, paixões e furores.
Aristóteles sistematizou lógica e racionalmente as
cosmologias ou teorias sobre a Natureza numa física, isto é, numa teoria ou
ciência sobre a matéria e a forma dos seres naturais e sobre as causas de seus
movimentos.
Para os gregos, como vimos, movimento (kinesis)
significa:
● toda mudança qualitativa de um ser qualquer (por exemplo,
uma semente que se torna árvore, um objeto branco que amarelece, um animal que
adoece, algo quente que esfria, algo frio que esquenta, o duro que amolece, o
mole que endurece, etc.);
● toda mudança ou alteração quantitativa (por exemplo, um
corpo que aumente e diminua, que se divida em outros menores, que encompride ou
encurte, alargue ou estreite, etc.);
● toda mudança de lugar ou locomoção (subir, descer, cair,
a trajetória de uma flecha, o deslocamento de um barco, a queda de uma pedra, o
levitar de uma pluma, etc.);
● toda geração ou nascimento e toda corrupção ou morte dos
seres.
Esses movimentos, diz Aristóteles, possuem causas, pois
tudo o que existe possui causa, e o conhecimento verdadeiro é o conhecimento
das causas. São quatro as causas dos movimentos:
1. causa material, isto é, a matéria de que alguma coisa é
feita (madeira, pedra, metal, líquido);
2. causa formal, isto é, a forma que alguma coisa possui e
que a individualiza e a diferencia das outras (a mesa é causa formal da
madeira, a estátua é causa formal da pedra, a taça é causa formal do metal, o
vinho é causa formal do líquido);
3. causa motriz ou eficiente, isto é, aquilo que faz uma
matéria receber uma forma determinada (no caso dos objetos artificiais ou
artefatos, a causa eficiente é o artesão – o carpinteiro que faz a mesa, o
escultor que faz a estátua, o ferreiro que faz a taça, o vinicultor que faz o
vinho; no caso dos seres naturais, a causa eficiente também é uma coisa natural
– por exemplo, o calor derrete o metal, o Sol esquenta um corpo e lhe dá outra
consistência ou forma, etc.);
4. causa final, isto é, o motivo ou finalidade para a qual
a coisa existe, se transforma e se realiza (a mesa existe para que possamos usá-la
para refeições, escrever, depositar objetos, etc.; a estátua, para o culto de
um deus; a taça, para colocarmos bebidas; o vinho, para bebermos).
Com a física aristotélica vemos a Natureza tornar-se
inteligível ao pensamento, que pode explicá-la, descrevê-la, compreendê-la e
interpretá-la conceitualmente.
[i]
Como já vimos, o juízo relaciona positiva ou negativamente um sujeito S
e um predicado ou conjunto de predicados P; S é P; S
não é P. Também relaciona S e P necessariamente:
“Sócrates é mortal”; acidentalmente: “Sócrates é pequeno”; possivelmente:
“Sócrates poderá vir à praça”, “Se não chover, Sócrates virá à praça”, etc.
[ii]
Quando Édipo nasce, um vidente, Tirésias, prevê que o menino matará o pai e se
casará com a mãe. Apavorado, o rei Laio – o pai – manda matar Édipo. O escravo
que deveria matar o menino sente piedade e o lança num precipício sem verificar
se está ou não morto; e entrega ao rei o coração de uma corça, como se fosse o
de Édipo. A criança não morre e é recolhida por um pastor. Este, por sua vez, a
entrega a um outro rei, que, idoso, lamentava não ter filhos. Ao crescer, Édipo
suspeita que não é filho de seus pais adotivos e sai à procura dos pais
verdadeiros. No caminho, vê uma batalha entre um grupo numeroso e um pequeno;
coloca-se ao lado deste último e mata o chefe do outro grupo – seu pai, Laio.
Chegando à sua cidade natal, fica sabendo que um monstro estava devorando as
virgens e só interromperá a matança se alguém decifrar um enigma que propõe.
Édipo decifra o enigma. Como recompensa, recebe a rainha em casamento. Casa-se
com Jocasta, sem saber que se tratava de sua verdadeira mãe, e com ela tem
filhos. A profecia se cumpre. A cidade será castigada com a peste e, ao tentar
combatê-la, pedindo aos deuses que lhe digam o que a causou, Édipo fica
sabendo, por Tirésias, que matou o pai e casou-se com a mãe. Fura os olhos e
exila-se, enquanto Jocasta se suicida.
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