O conhecimento Capítulo 6 O pensamento Pensando

Convite à Filosofia
De Marilena Chaui
Ed. Ática, São Paulo, 2000.
Unidade 4
O conhecimento
Capítulo 6
O pensamento
Pensando…
Certa vez um grego disse: “O pensamento é o passeio da alma”. Com isso quis dizer que o pensamento é a maneira como nosso espírito parece sair de dentro de si mesmo e percorrer o mundo para conhecê-lo. Assim como no passeio levamos nosso corpo a toda parte, no pensamento levamos nossa alma a toda parte e mais longe do que o corpo, pois a alma não encontra obstáculos físicos para seu caminhar.
O pensamento é essa curiosa atividade na qual saímos de nós mesmos sem sairmos de nosso interior. Por isso, outro filósofo escreveu que pensar é a maneira pela qual sair de si e entrar em si são uma só e mesma coisa. Como um vôo sem sair do lugar.
Em nosso cotidiano usamos as palavras pensar e pensamento em sentidos variados e múltiplos. Podemos chegar a uma pessoa amiga, vê-la silenciosa e dizer-lhe: “Por favor, diga-me seu pensamento, em que você está pensando?”. Com isso, reconhecemos uma atividade solitária, invisível para nós e que precisa ser proferida para ser compartilhada.
Outras vezes, porém, podemos dizer a essa mesma pessoa: “Você pensa que não sei o que você está pensando?”. Agora, damos a entender que dispomos de sinais – alguma coisa que foi dita, um gesto, um olhar, uma expressão fisionômica – que nos permitem “ver” o pensamento de alguém e, portanto, acreditamos que pensar também se traduz em sinais corporais e visíveis. O pensamento é menos solitário e menos secreto do que se poderia supor.
Algumas vezes, chegamos para alguém e indagamos: “Como é, pensou?”, e ouvimos a resposta: “Sim. Vamos fazer o trabalho”. Ou então: “Ainda estou pensando no assunto. Vamos ver depois”. Nesses casos, pensar é tomado por nós como sinônimo de deliberação e de decisão, como algo que resulta numa ação.
Muitas vezes, podem dizer-nos: “Você pensa demais, não faz bem à saúde”. Ou ouvimos a frase: “Ela ficou parada lá na esquina, quieta, pensando, pensando”. Podemos falar: “Por mais que pense nisso não consigo acreditar e, quanto mais penso, menos acredito”. Agora, pensar é visto como preocupação (fazendo mal à saúde), cisma (ficar parada, quieta, cismando), dúvida (quanto mais penso, menos acredito).
Alguns jornais costumam publicar algo que alguém disse com o título: “O pensamento do dia é…”, querendo dizer com isso que uma determinada idéia, definindo algum assunto, foi publicamente anunciada. Essa mesma identificação entre pensamento e idéia pode aparecer quando, por exemplo, um crítico literário escreve: “O livro de Fulano tem alguns bons pensamentos, mas tem outros banais”, classificando idéias em “boas” e “banais”, isto é, umas que dizem algo novo e interessante e outras que repetem lugares-comuns ou frivolidades. Supomos, dessa maneira, que há bons e maus pensamentos, tanto assim que falamos em “pensamento positivo” e em “afastar os maus pensamentos”.
Um professor pode criticar o trabalho de um aluno dizendo-lhe: “Esse trabalho mostra que você não quis pensar”. Aqui, pensar não é só ter idéias, mas também algo que se pode querer ou não querer, algo voluntário e deliberado, uma forma de atenção e concentração. Essa imagem de concentração aparece, por exemplo, quando alguém se zanga e diz: “Querem, por favor, fazer silêncio? Não estão vendo que estou pensando?”.
E já mencionamos o célebre “Penso, logo existo” (Cogito, ergo sum), de Descartes, e a definição do homem como “caniço pensante”, feita por Pascal. Aqui, pensar e pensamento indicam a própria essência da natureza humana.
O que dizem os dicionários
Se procurarmos pensar e pensamento nos dicionários, notaremos que os vários sentidos dados a esses termos recobrem os exemplos que demos do uso dessas palavras em nosso cotidiano e ainda acrescentam alguns outros sentidos.
Pensar, dizem os dicionários, significa: 1. aplicar a atividade do espírito aos elementos fornecidos pelo conhecimento; formar e combinar idéias; julgar, refletir, raciocinar, especular; 2. exercer a inteligência; meditar, ver; 3. exercer o espírito ou a atividade consciente de uma maneira global: sentir, querer, refletir; 4. ter uma opinião, uma convicção; 5. supor, presumir, crer, admitir, suspeitar, achar; 6. esperar, tencionar; 7. preocupar-se; 8. avaliar; 9. cismar.
Pensamento, de acordo com os dicionários, significa: 1. o ato de refletir, meditar ou pensar, ou o processo mental que se concentra em idéias; 2. a atividade de conhecimento ou tendo por objeto o conhecimento; 3. consciência, mente, espírito, entendimento, intelecto, razão; 4. poder de formular idéias e conceitos; 5. faculdade de pensar logicamente, raciocínio, ponto de vista, formulação de um juízo; 6. aquilo que é pensado ou o resultado do ato de pensar: idéia, ponto de vista, opinião, juízo; 7. fantasia, sonho, devaneio, lembrança, recordação, cuidado, preocupação, expectativa; 8. conjunto das idéias ou doutrina de um pensador, de uma sociedade, de um grupo, de uma coletividade.
Assim, no exemplo “Você pensa demais, não é bom para a saúde”, pensar e pensamento significam preocupação; no exemplo “Por mais que pense nisso, não acredito que seja assim”, pensar e pensamento significam cisma e dúvida; no exemplo “Ainda estou pensando no assunto”, pensar e pensamento significam formar uma opinião ou um ponto de vista; no exemplo “Acabem com esse barulho, não estão vendo que estou pensando?”, pensar e pensamento significam atividade mental ou intelectual para formular uma idéia ou um conceito.
Se eu disser: “Penso que ela virá”, estou exprimindo uma expectativa; se disser: “Penso que você sabe disso”, estou exprimindo uma suposição; se disser: “Pensei nele a noite inteira, nem pude dormir”, estou exprimindo preocupação; se disser: “Eu a vi perdida em pensamentos”, quero dizer que vi alguém cismando, fantasiando, imaginando. Mas se eu disser: “A teoria da relatividade resulta do trabalho do pensamento de Einstein”, estou dizendo que o pensamento é uma atividade intelectual de produção de conhecimentos.
Quando procuramos a origem das palavras pensamento e pensar, descobrimos que procedem de um verbo latino, o verbo pendere, que significa: ficar em suspenso, estar ou ficar pendente ou pendurado, suspender, pesar, pagar, examinar, avaliar, ponderar, compensar, recompensar e equilibrar.
Pensar, portanto, é suspender o julgamento (até formar uma idéia ou opinião), pesar (comparar idéias, opiniões, pontos de vista), avaliar (julgar o valor de uma idéia ou opinião, ou seja, se é verdadeira ou falsa, justa ou injusta, adequada ou inadequada), examinar (idéias, opiniões, juízos, pontos de vista), ponderar (isto é, pesar idéias e pontos de vista para escolher um deles), equilibrar (encontrar o meio-termo entre extremos ou entre opostos). Pensare, derivando-se de pendere, caracteriza-se mais como uma atividade sobre idéias, opiniões, juízos e pontos de vista já existentes do que como criação ou produção de uma idéia ou ponto de vista.
Por esse motivo, quando lemos os textos filosóficos antigos e modernos, escritos em latim, notamos que não usam pendere e pensare para dizer pensar, mas empregam dois outros verbos: cogitare e intelligere.
Cogitare significa: considerar atentamente e meditar. Esse verbo vem do outro, agere, que significa: empurrar para diante de si, e também do verbo agitare, que significa: empurrar para frente com força, agitar. Pensar, enquanto cogitare, é colocar diante de si alguma coisa para considerá-la com atenção ou forçar alguma coisa a ficar diante de nós para ser examinada.
O verbo intelligere vem da composição de duas outras palavras: inter, isto é, entre, e legere, que significa: colher, reunir, recolher, escolher e ler (isto é, reunir as letras com os olhos). Por isso, intelligere significa: escolher entre, reunir entre vários, apanhar, aprender, compreender, ler entre, ler dentro de. Donde: conhecer e entender.
Se reunirmos os vários sentidos dos três verbos – pensare, cogitare e intelligere -, veremos que pensar e pensamento sempre significam atividades que exigem atenção: pesar, avaliar, equilibrar, colocar diante de si para considerar, reunir e escolher, colher e recolher. O pensamento é, assim, uma atividade pela qual a consciência ou a inteligência coloca algo diante de si para atentamente considerar, avaliar, pesar, equilibrar, reunir, compreender, escolher, entender e ler por dentro.
Isso explica todos os sentidos que vimos surgir nos dicionários da língua portuguesa e nos exemplos que demos: meditar, concentrar-se, cismar, opinar, ter idéias, compreender as coisas, raciocinar, formular conceitos, ter um ponto de vista, refletir, avaliar, preocupar-se.
O pensamento é a consciência ou a inteligência saindo de si (“passeando”) para ir colhendo, reunindo, recolhendo os dados oferecidos pela experiência, pela percepção, pela imaginação, pela memória, pela linguagem, e voltando a si, para considerá-los atentamente, colocá-los diante de si, observá-los intelectualmente, pesá-los, avaliá-los, retirando deles conclusões, formulando com eles idéias, conceitos, juízos, raciocínios, valores.
O pensamento exprime nossa existência como seres racionais e capazes de conhecimento abstrato e intelectual, e sobretudo manifesta sua própria capacidade para dar a si mesmo leis, normas, regras e princípios para alcançar a verdade de alguma coisa.
Experiências de pensamento
Muitas vezes nos acontece de passarmos horas matutando, cismando, querendo compreender alguma coisa que nos escapa. Fazemos nossas atividades de todo dia, mas parecemos distraídos porque nossa atenção está concentrada noutra parte, naquilo que estamos querendo compreender e não conseguimos. Cansados, paramos de cismar e de dar atenção ao assunto. De repente, com susto e alegria, quase gritamos: “Entendi!”. Sentimos o mesmo que quando completamos um quebra-cabeça, todas as peças em seus devidos lugares, a figura bem visível diante de nós. Tivemos uma experiência de pensamento.
Outras vezes, assistindo a uma aula, lendo um livro científico, fazendo um trabalho no laboratório, resolvendo um problema no computador, vamos acompanhando passo a passo as idéias, os encadeamentos dos raciocínios, as relações de causa e efeito entre certas coisas, as conseqüências de uma afirmação e de uma negação e, finalmente, a conclusão a que chegam a aula, o livro, o trabalho no laboratório ou no computador. Ao término de cada uma dessas atividades temos consciência de que aprendemos alguma coisa que não sabíamos e que fizemos um percurso para conhecê-la e compreendê-la. Tivemos uma experiência de pensamento.
Em certas ocasiões, dialogando com uma outra pessoa, a conversa vai fazendo surgir idéias nas quais eu nunca havia pensado, ou vai fazendo com que eu perceba que algumas idéias, que julgava claras e corretas, não são assim, são confusas e incorretas. Falando com a outra pessoa, vou desenvolvendo idéias que eu nem sabia que tinha e que foram despertadas em mim por alguma coisa que o outro me disse. Clarifico algumas, corrijo outras, abandono outras tantas, descubro novas, tiro conclusões ou me encho de perplexidade. Tive uma experiência de pensamento.
Quando pensamos, pomos em movimento o que nos vem da percepção, da imaginação, da memória; apreendemos o sentido das palavras; encadeamos e articulamos significações, algumas vindas de nossa experiência sensível, outras de nosso raciocínio, outras formadas pelas relações entre imagens, palavras, lembranças e idéias anteriores. O pensamento apreende, compara, separa, analisa, reúne, ordena, sintetiza, conclui, reflete, decifra, interpreta, interroga.
A inteligência
A psicologia costuma definir a inteligência por sua função, considerando-a uma atividade de adaptação ao ambiente, através do estabelecimento de relações entre meios e fins para a solução de um problema ou de uma dificuldade. Essa definição concebe, portanto, a inteligência como uma atividade eminentemente prática e a distingue de duas outras que também possuem finalidade adaptativa e relacionam meios e fins: o instinto e o hábito.
Compartilhamos o instinto e o hábito com os animais. O instinto, por exemplo, nos leva automaticamente a contrair a pupila quando nossos olhos estão muito expostos à luz e a dilatá-la quando estamos na escuridão; leva-nos a afastar rapidamente a mão de uma superfície muito quente que possa queimar-nos. O instinto é inato. Ao contrário, o hábito é adquirido, mas, como o instinto, tende a realizar-se automaticamente. Por exemplo, quem adquire o hábito de dirigir um veículo, muda as marchas, pisa na embreagem, no acelerador ou no freio sem precisar pensar nessas operações; quem aprende a patinar ou a nadar, realiza maquinalmente os gestos necessários, depois de adquiri-los.
Instinto e hábito são formas de comportamento cuja principal característica é serem especializados ou específicos: a abelha sabe fazer a colméia, mas é incapaz de fazer o ninho; o joão-de-barro constrói uma “casa”, mas é incapaz de fazer uma colméia; posso aprender a nadar, mas esse hábito não me faz saber andar de bicicleta.
O instinto e o hábito especializam as funções, os meios e os fins e não possuem flexibilidade para mudá-los ou para adaptar um novo meio para um novo fim, nem para usar meios novos para um fim já existente. A tendência do instinto ou do hábito é a repetição e o automatismo das respostas aos problemas.
A inteligência difere do instinto e do hábito por sua flexibilidade, pela capacidade de encontrar novos meios para um novo fim, ou de adaptar meios existentes para uma finalidade nova, pela possibilidade de enfrentar de maneira diferente situações novas e inventar novas soluções para elas, pela capacidade de escolher entre vários meios possíveis e entre vários fins possíveis. Nesse nível prático, a inteligência é capaz de criar instrumentos, isto é, de dar uma função nova e um sentido novo a coisas já existentes, para que sirvam de meios a novos fins.
Compartilhamos a inteligência prática com alguns animais, especialmente com os chimpanzés. O psicólogo Köhler fez experiências com alguns desses animais e demonstrou que eram capazes de comportamentos inteligentes:
● colocado um chimpanzé numa pequena sala, põe-se a seu lado um certo número de caixotes e prende-se uma banana no teto. Após saltos instintivos (infrutíferos) para a agarrar a banana, o chimpanzé consegue empilhar os caixotes, subir neles e agarrar o alimento;
● colocado um chimpanzé numa pequena sala, nas mesmas circunstâncias anteriores, mas oferecendo bambus em vez de caixotes, o chimpanzé termina por encaixar os bambus uns nos outros, formando um instrumento para apanhar a banana.
Os gestaltistas explicam o comportamento do chimpanzé mostrando que ele se comporta percebendo um campo perceptivo no qual a banana, os caixotes e os bambus formam uma totalidade e se relacionam enquanto partes de um todo, de modo que os caixotes e os bambus são percebidos como parte da paisagem e como meios para um fim (agarrar a banana).
O fato de que o chimpanzé percebe um campo perceptivo, e não objetos isolados, é demonstrado quando, no lugar dos bambus, são colocados arames, que o animal enganchará uns nos outros para colher a fruta; ou quando, no lugar dos caixotes, são colocadas mesinhas de tamanhos diferentes, que podem ser empilhadas pelo animal para agarrar a banana.
No entanto, observa-se algo interessante. Depois de comer a banana, o chimpanzé nada faz com os caixotes, os bambus, os arames ou as mesas. Ficam à sua volta como objetos sem sentido. Ao contrário, uma criança nas mesmas circunstâncias, depois de conseguir apanhar um doce, por exemplo, examinará os objetos. Se descobrir que são desmontáveis, ela tentará fazer, com os caixotes e as mesas, uma escada, e com os bambus e os arames, uma rede.
Essa diferença nos comportamentos do chimpanzé e da criança revela que esta última ultrapassa a situação imediata de fome e de uso direto dos objetos e prevê uma situação futura para a qual encontra uma solução, transformando os objetos em instrumentos propriamente ditos.
A criança antecipa uma situação e transforma os dados de uma situação presente, fabricando meios para certos fins que ainda estão ausentes. Ela se lembra da situação passada, espera a situação futura, organiza a situação presente a partir dos dados lembrados, esperados e percebidos, imagina uma situação nova e responde a ela, mesmo que ainda esteja ausente.
A criança se relaciona com o tempo e transforma seu espaço por essa relação temporal. A criança representa seu mundo e atua praticamente sobre ele. Sua inteligência difere, portanto, da do animal.
Inteligência e linguagem
Não somos dotados apenas de inteligência prática ou instrumental, mas também de inteligência teórica e abstrata. Pensamos.
O exercício da inteligência como pensamento é inseparável da linguagem, como já vimos, pois a linguagem é o que nos permite estabelecer relações, concebê-las e compreendê-las. Graças às significações escada e rede, a criança pode pensar nesses objetos e fabricá-los.
A linguagem articula percepções e memórias, percepções e imaginações, oferecendo ao pensamento um fluxo temporal que conserva e interliga as idéias.
O psicólogo Piaget, estudando a gênese da inteligência nas crianças, mostrou como a aquisição da linguagem e a do pensamento caminham juntas. Assim, por exemplo, uma criança de quatro anos ainda não é capaz de pensar relações reversíveis ou recíprocas porque não domina a linguagem desse tipo de relações. Se se perguntar a ela: “Você tem um irmão?”, ela responderá: “Sim”. Se continuarmos a perguntar: “Quem é o seu irmão?”, ela responderá: “Pedrinho”. No entanto, se lhe perguntarmos: “Pedrinho tem uma irmã?”, ela dirá: “Não”, pois a linguagem que ela possui permite-lhe estabelecer relações entre ela e o mundo, mas não entre o mundo e ela.
A inteligência humana, enquanto atividade mental e de linguagem, pode ser definida como a capacidade para enfrentar ou colocar diante de si problemas práticos e teóricos, para os quais encontra, elabora ou concebe soluções, seja pela criação de instrumentos práticos (as técnicas), seja pela criação de significações (idéias e conceitos). Caracteriza-se pela flexibilidade, plasticidade e inovação, bem como pela possibilidade de transformar a própria realidade (trabalho, artes, técnicas, ações políticas, etc.). A inteligência se realiza, portanto, como conhecimento e ação.
O conhecimento inteligente apreende o sentido das palavras, interpreta-o, inventa novos sentidos para palavras antigas ou cria novas palavras para novos sentidos. O movimento de conhecer é, pois, um movimento cujo corpo é a linguagem. Graças a ela, compartilhamos com outros os nossos conhecimentos e recebemos de outros os conhecimentos.
Comunicação, informação, memória cultural, transmissão, inovação e ruptura: eis o que a linguagem permite à inteligência. Clarificação, organização, ordenamento, análise, interpretação, compreensão, síntese, articulação: eis o que a inteligência oferece à linguagem.
Inteligência e pensamento
A inteligência colhe, recolhe e reúne os dados oferecidos pela percepção, pela imaginação, pela memória e pela linguagem, formando redes de significações com as quais organizamos e ordenamos nosso mundo e nossa vida, recebendo e doando sentido a eles. O pensamento, porém, vai além do trabalho da inteligência: abstrai (ou seja, separa) os dados das condições imediatas de nossa experiência e os elabora sob a forma de conceitos, idéias e juízos, estabelecendo articulações internas e necessárias entre eles pelo raciocínio (indução e dedução), pela análise e pela síntese. Formula teorias, procura prová-las e verificá-las, pois está voltado para a verdade do conhecimento.
Um conceito ou uma idéia é uma rede de significações que nos oferece: o sentido interno e essencial daquilo a que se refere; os nexos causais ou as relações necessárias entre seus elementos, de sorte que por eles conhecemos a origem, os princípios, as conseqüências, as causas e os efeitos daquilo a que se refere. O conceito ou idéia nos oferece a essência-significação necessária de alguma coisa, sua origem ou causa, suas conseqüências ou seus efeitos, seu modo de ser e de agir.
Assim, por exemplo, vejo rosas, margaridas, girassóis. Mas concebo pelo pensamento o conceito ou a idéia universal de flor. Sinto corpos quentes, mornos, frios, gelados, sinto o frio da neve, o calor do Sol, a tepidez agradável da água do mar ou da piscina. Mas concebo pelo pensamento o conceito ou idéia de temperatura. Vejo uma bola, no conjunto musical toco um triângulo, escrevo sobre uma mesa cujo tampo tem quatro lados iguais. Mas pelo pensamento concebo o conceito ou a idéia de esfera ou círculo, de triângulo, de quadrado. Vou além: pelo puro pensamento, formulo o conceito de figura geométrica e das leis que a regem, elaborando axiomas, postulados e teoremas.
Os conceitos ou idéias são redes de significações cujos nexos um ligações são expressos pelo pensamento através dos juízos[i], pelos quais estabelecemos os elos internos e necessários entre um ser e as qualidades, as propriedades, os atributos que lhe pertencem, assim como aqueles predicados que lhe são acidentais e que podem ser retirados sem que isso afete o sentido e a realidade de um ser.
Um conjunto de juízos constitui uma teoria, quando:
● estabelece com clareza um campo de objetos e os procedimentos para conhecê-los e enunciá-los;
● organizam-se e ordenam-se os conceitos;
● articulam-se e demonstram-se os juízos, verificando seu acordo com regras e princípios de racionalidade e demonstração.
Teoria é explicação, descrição e interpretação geral das causas, formas, modalidades e relações de um campo de objetos, conhecidos graças a conhecimentos específicos, próprios à natureza dos objetos investigados.
O pensamento elabora teorias, ou seja, uma explicação ou interpretação intelectual de um conjunto de fenômenos e significações (objetos, fatos, situações, acontecimentos), que estabelece a natureza, o valor e a verdade de tais fenômenos. Por isso falamos em teoria da relatividade, teoria genética, teoria aristotélica, teoria psicanalítica, etc.
Uma teoria pode ou não nascer diretamente de uma prática e ter ou não uma aplicação prática direta, mas não é a prática que permite determinar a verdade ou falsidade teórica e sim critérios internos à própria teoria (seja sua correspondência com as coisas teorizadas, seja a coerência interna de seus argumentos, seus raciocínios, suas demonstrações e suas provas, seja, enfim, a consistência lógica de suas significações). A prática orienta o trabalho teórico, verifica suas conclusões, mas não determina sua verdade ou falsidade.
O pensamento propõe e elabora teorias e cria métodos.
A necessidade do método
A palavra método vem do grego, methodos, composta de meta: através de, por meio de, e de hodos: via, caminho. Usar um método é seguir regular e ordenadamente um caminho através do qual uma certa finalidade ou um certo objetivo é alcançado. No caso do conhecimento, é o caminho ordenado que o pensamento segue por meio de um conjunto de regras e procedimentos racionais, com três finalidades:
1. conduzir à descoberta de uma verdade até então desconhecida;
2. permitir a demonstração e a prova de uma verdade já conhecida;
3. permitir a verificação de conhecimentos para averiguar se são ou não verdadeiros.
O método é, portanto, um instrumento racional para adquirir, demonstrar ou verificar conhecimentos.
Por que se sente a necessidade de um método? Porque, como vimos, o erro, a ilusão, o falso, a mentira rondam o conhecimento, interferem na experiência e no pensamento. Para dar segurança ao conhecimento, o pensamento cria regras e procedimentos que permitam ao sujeito cognoscente aferir e controlar todos os passos que realiza no conhecimento de algum objeto ou conjunto de objetos.
A Filosofia conheceu diferentes concepções de método.
Platão, por exemplo, considerava que o melhor caminho para o conhecimento verdadeiro era o que permitia ao pensamento libertar-se do conhecimento sensível (crenças, opiniões), isto é, das imagens e aparências das coisas. Atribuía esse papel liberador à discussão racional, sob a forma do diálogo.
No diálogo, os interlocutores, guiados pelas perguntas do filósofo (no caso, Sócrates), examinam e discutem opiniões que cada um deles possui sobre alguma coisa; descobrem que suas opiniões são contraditórias e não levam a conhecimento algum. Aceitam abandoná-las e conseguem, pouco a pouco, chegar à idéia universal ou à essência da coisa procurada. Por se tratar de um confronto entre imagens e opiniões contrárias ou contraditórias, esse método ou caminho era chamado por Platão de dialética (discussão de teses contrárias e em conflito ou oposição).
Aristóteles, no entanto, considerou a dialética inadequada ao pensamento, pois, dizia ele, tal procedimento lida com meras opiniões prováveis, não oferecendo qualquer garantia de que tenhamos superado o conflito de opiniões e alcançado a essência verdadeira da coisa investigada. Por esse motivo, definiu o procedimento filosófico-científico como um método demonstrativo que se realiza por meio de silogismos. O silogismo é um conjunto de três juízos ou proposições que permite obter uma conclusão verdadeira. Trata-se de um método dedutivo no qual, de duas premissas, deduz-se uma conclusão. Por exemplo:
Todos os homens são mortais.
Sócrates é homem.
Logo, Sócrates é mortal.
Aristóteles considerava, porém, que os objetos que são conhecidos por experiência, e não só pelo puro pensamento, deveriam seguir um método indutivo, no qual o silogismo seria o resultado final conseguido pelo conhecimento.
Durante a modernidade (isto é, a partir do século XVII), a necessidade de um método tornou-se ainda mais imperiosa do que antes, pois, como vimos, o sujeito do conhecimento não sabe se pode alcançar a verdade.
O sujeito do conhecimento descobre-se como uma consciência que parece não poder contar com o auxílio do mundo para guiá-lo, desconfia dos conhecimentos sensíveis e dos conhecimentos herdados. Está só. Conta apenas com seu próprio pensamento. Separado do mundo, isolado com suas percepções, opiniões, idéias, sua solidão torna indispensável um método que possa guiar o pensamento em direção aos conhecimentos verdadeiros e distingui-los dos falsos. Eis porque Descartes escreve o Discurso do método e as Regras para a direção do espírito. Sobre o método, diz ele, na regra IV das Regras:
Por método, entendo regras certas e fáceis, graças às quais todos os que as observem exatamente jamais tomarão como verdadeiro aquilo que é falso e chegarão, sem se cansar com esforços inúteis e aumentando progressivamente sua ciência, ao conhecimento verdadeiro de tudo o que lhes é possível esperar.
Descartes enuncia, portanto, as três principais características das regras do método:
1. certas (o método dá segurança ao pensamento);
2. fáceis (o método economiza esforços inúteis); e
3. que permitam alcançar todos os conhecimentos possíveis para o entendimento humano.
Por sua vez, Francis Bacon definiu o método como o modo seguro e certo de “aplicar a razão à experiência”, isto é, de aplicar o pensamento lógico aos dados oferecidos pelo conhecimento sensível.
O método, nas várias formulações que recebeu no correr da história da Filosofia e das ciências, sempre teve o papel de um regulador do pensamento, isto é, de aferidor e avaliador das idéias e teorias: guia o trabalho intelectual (produção das idéias, dos experimentos, das teorias) e avalia os resultados obtidos.
Desde Aristóteles, a Filosofia considera que, ao lado de um método geral que todo e qualquer conhecimento deve seguir, tanto para a aquisição quanto para a demonstração e verificação de verdades, outros métodos particulares são necessários, pois os objetos a serem conhecidos também exigem métodos que estejam em conformidade com eles e, assim, haverá diferentes métodos conforme a especificidade do objeto a ser conhecido. Dessa maneira, são diferentes entre si os métodos da geometria e da física, da biologia e da sociologia, da história e da química, e assim por diante.
É interessante notar, todavia, que, em certos períodos da história da Filosofia e das ciências, chegou-se a pensar num método único que ofereceria os mesmos princípios e as mesmas regras para todos os campos do conhecimento. Assim, por exemplo, Galileu julgou que o método matemático deveria ser usado em todos os conhecimentos da Natureza, pois, dizia ele, “A Natureza é um livro escrito em caracteres matemáticos”.
Descartes, indo mais longe que Galileu, julgou que um só e mesmo método deveria ser empregado pela Filosofia e por todas as ciências, uma mathesis universalis, ou o conhecimento da ordem necessárias das idéias, válida para todos os objetos de conhecimento. Conhecer seria ordenar e encadear em nexos contínuos as idéias referentes a um objeto e tal procedimento deveria ser o mesmo em todos os conhecimentos porque esse é o modo próprio do pensamento, seja qual for o objeto a ser conhecido.
Os filósofos e cientistas do final do século XIX também afirmavam que um método único deveria ser seguido. Entusiasmados com os desenvolvimentos da física, julgaram que todos os campos do saber deveriam empregar o método usado pela “ciência da Natureza”, mesmo quando o objeto fosse o homem. Agora, não era tanto a idéia de ordenamento interno das idéias que levava à defesa de um único método de conhecimento, mas a idéia da causalidade ou de explicação causal de todos os fatos, fossem eles naturais ou humanos.
Hoje, porém, sobretudo com a fenomenologia de Husserl e com a corrente do pensamento conhecida como estruturalismo, considera-se que cada campo do conhecimento deva ter seu método próprio, determinado pela natureza do objeto, pela forma como o sujeito do conhecimento pode aproximar-se desse objeto e pelo conceito de verdade que cada esfera do conhecimento define para si própria.
Assim, por exemplo, considera-se o método matemático, isto é, dedutivo, próprio para objetos que existem apenas idealmente e que são construídos inteiramente pelo nosso pensamento; ao contrário, o método experimental, isto é, indutivo, é próprio das ciências naturais, que observam seus objetos e realizam experimentos.
Já as ciências humanas têm métodos de compreensão e de interpretação do sentido das ações, das práticas, dos comportamentos, das instituições sociais e políticas, dos sentimentos, dos desejos, das transformações históricas, pois o homem, objeto dessas ciências, é um ser histórico-cultural que produz as instituições e o sentido delas. Tal sentido é o que precisa ser conhecido.
No caso das ciências exatas (as matemáticas), o método é chamado axiomático, isto é, baseia o conhecimento num conjunto de termos primitivos e de axiomas, que são o ponto de partida da construção e demonstração dos objetos.
No caso das ciências naturais (física, química, biologia, etc.), o método é chamado experimental e hipotético. Experimental, porque se baseia em observações e em experimentos, tanto para formular quanto para verificar as teorias. Hipotético, porque os cientistas partem de hipóteses sobre os objetos que guiam os experimentos e a avaliação dos resultados.
No caso das ciências humanas (psicologia, sociologia, antropologia, história, etc.), o método é chamado compreensivo-interpretativo, porque seu objeto são as significações ou os sentidos dos comportamentos, das práticas e das instituições realizadas ou produzidas pelos seres humanos.
Quanto à Filosofia, embora os filósofos tenham oscilado entre vários métodos possíveis, atualmente quatro traços são comuns aos diferentes métodos filosóficos:
1. o método é reflexivo – parte da auto-análise ou do autoconhecimento do pensamento;
2. é crítico – investiga os fundamentos e as condições necessárias da possibilidade do conhecimento verdadeiro, da ação ética, da criação artística e da atividade política;
3. é descritivo – descreve as estruturas internas ou essências de cada campo de objetos do conhecimento e das formas de ação humana;
4. é interpretativo – busca as formas da linguagem e as significações ou os sentidos dos objetos, dos fatos, das práticas e das instituições, suas origens e transformações.
Pensamento mítico e pensamento lógico
No capítulo anterior, vimos que a língua grega possuía duas palavras para referir-se à linguagem: mythos e logos. Vimos também, tanto no estudo da linguagem quanto no da inteligência, que falar e pensar são inseparáveis. Por isso mesmo, podemos referir-nos a duas modalidades do pensamento, conforme predomine o mythos ou o logos.
A tradição filosófica, sobretudo a partir do século XVIII (com a filosofia da Ilustração) e do século XIX (com a filosofia da história de Hegel e o positivismo de Comte), afirmava que do mito à lógica havia uma evolução do espírito humano, isto é, o mito era uma fase ou etapa do espírito humano e da civilização que antecedia o advento da lógica ou do pensamento lógico, considerado a etapa posterior e evoluída do pensamento e da civilização. Essa tradição filosófica fez crer que o mito pertenceria a culturas “inferiores”, “primitivas” ou “atrasadas”, enquanto o pensamento lógico ou racional pertenceria a culturas “superiores”, “civilizadas” e “adiantadas”.
Essa separação temporal e evolutiva de duas modalidades de pensamento fazia com que se julgasse a presença, em nossas sociedades, de explicações míticas (isto é, as religiões, a literatura, as artes) como uma espécie de “resíduo” ou “resto” de uma fase passada da evolução da humanidade, destinada a desaparecer com a plena evolução da racionalidade científica e filosófica.
Hoje, porém, sabe-se que a concepção evolutiva está equivocada. O pensamento mítico pertence ao campo do pensamento simbólico e da linguagem simbólica, que coexistem com o campo do pensamento e da linguagem conceituais. Duas linhas de estudos mostraram essa coexistência, embora essas duas modalidades de pensamento e de linguagem sejam não só diferentes, mas também, freqüentemente, contrárias e opostas.
A primeira linha vem da antropologia social, que estuda os mitos das sociedades ditas selvagens e também as mitologias de nossas sociedades, ditas civilizadas. Os antropólogos mostraram que, no caso de nossas sociedades, a presença simultânea do conceitual e do mítico decorre do modo como a imaginação social transforma em mito aquilo que o pensamento conceitual elabora nas ciências e na Filosofia. Basta ver o caráter mágico-maravilhoso dado aos satélites e computadores para vermos a passagem da ciência ao mito.
A segunda linha vem da neurologia e da análise da anatomia e da fisiologia do cérebro humano, mostrando que esse órgão possui duas partes ou dois hemisférios, num deles localizando-se a linguagem e o pensamento simbólicos e noutro, a linguagem e o pensamento conceituais. Certas pessoas, como os artistas, desenvolvem mais o hemisfério simbólico, enquanto outras, como os cientistas, desenvolvem mais o hemisfério conceitual e lógico.
Assim, a predominância de uma ou outra forma do pensamento depende, por um lado, das tendências pessoais e da história da vida dos indivíduos e, de outro lado, do modo como uma sociedade ou uma cultura recorrem mais a uma do que à outra forma para interpretar a realidade, intervir no mundo e explicar-se a si mesma.
Numa passagem célebre de uma de suas obras, Marx dizia que o mito de Zeus (portador de raios, trovões e tempestades) não mais poderia funcionar numa sociedade que inventou o pára-raios, isto é, descobriu cientificamente a eletricidade. Mas o próprio Marx mostrou como tal sociedade cria novos mitos, adaptados à era da máquina e da tecnologia.
Como o mito funciona
O antropólogo Claude Lévi-Strauss estudou o “pensamento selvagem” para mostrar que os chamados selvagens não são atrasados nem primitivos, mas operam com o pensamento mítico.
O mito e o rito, escreve Lévi-Strauss, não são lendas nem fabulações, mas uma organização da realidade a partir da experiência sensível enquanto tal. Para explicar a composição de um mito, Lévi-Strauss se refere a uma atividade que existe em nossa sociedade e que, em francês, se chama bricolage.
Que faz um bricoleur, ou seja, quem pratica bricolage? Produz um objeto novo a partir de pedaços e fragmentos de outros objetos. Vai reunindo, sem um plano muito rígido, tudo o que encontra e que serve para o objeto que está compondo. O pensamento mítico faz exatamente a mesma coisa, isto é, vai reunindo as experiências, as narrativas, os relatos, até compor um mito geral. Com esses materiais heterogêneos produz a explicação sobre a origem e a forma das coisas, suas funções e suas finalidades, os poderes divinos sobre a Natureza e sobre os humanos. O mito possui, assim, três características principais:
1. função explicativa: o presente é explicado por alguma ação passada cujos efeitos permaneceram no tempo. Por exemplo, uma constelação existe porque, no passado, crianças fugitivas e famintas morreram na floresta e foram levadas ao céu por uma deusa que as transformou em estrelas; as chuvas existem porque, nos tempos passados, uma deusa apaixonou-se por um humano e, não podendo unir-se a ele diretamente, uniu-se pela tristeza, fazendo suas lágrimas caírem sobre o mundo, etc.;
2. função organizativa: o mito organiza as relações sociais (de parentesco, de alianças, de trocas, de sexo, de idade, de poder, etc.) de modo a legitimar e garantir a permanência de um sistema complexo de proibições e permissões. Por exemplo, um mito como o de Édipo[ii] existe (com narrativas diferentes) em quase todas as sociedades selvagens e tem a função de garantir a proibição do incesto, sem a qual o sistema sociopolítico, baseado nas leis de parentesco e de alianças, não pode ser mantido;
3. função compensatória: o mito narra uma situação passada, que é a negação do presente e que serve tanto para compensar os humanos de alguma perda como para garantir-lhes que um erro passado foi corrigido no presente, de modo a oferecer uma visão estabilizada e regularizada da Natureza e da vida comunitária.
Por exemplo, entre os mitos gregos, encontra-se o da origem do fogo, que Prometeu roubou do Olimpo para entregar aos mortais e permitir-lhes o desenvolvimento das técnicas. Numa das versões desse mito, narra-se que Prometeu disse aos homens que se protegessem da cólera de Zeus realizando o sacrifício de um boi, mas que se mostrassem mais astutos do que esse deus, comendo as carnes e enviando-lhe as tripas e gorduras. Zeus descobriu a artimanha e os homens seriam punidos com a perda do fogo se Prometeu não lhes ensinasse uma nova artimanha: colocar perfumes e incenso nas partes dedicadas ao deus.
Com esse mito, narra-se o modo como os humanos se apropriaram de algo divino (o fogo) e criaram um ritual (o sacrifício de um animal com perfumes e incenso) para conservar o que haviam roubado dos deuses.
Como opera o pensamento mítico?
Antes de tudo, pela reunião de heterogêneos. O mito reúne, junta, relaciona e faz elementos diferentes e heterogêneos agirem uns sobre os outros. Por exemplo, corpos de crianças são estrelas, lágrimas de uma deusa são chuva, o dia é o carro do deus Apolo, a noite é o manto de uma deusa, o tempo é um deus (na mitologia grega, Cronos), etc.
Em segundo lugar, o mito organiza a realidade, dando às coisas, aos fatos, às instituições um sentido analógico e metafórico, isto é, uma coisa vale por outra, substitui outra, representa outra. No mito de Édipo, por exemplo, os pés e o modo de andar têm um significado analógico, metafórico e simbólico muito preciso. Labdáco, avô de Édipo, quer dizer coxo; Laio, pai de Édipo, quer dizer pé torto; Édipo quer dizer pé inchado.
Essa referência aos pés e ao modo de andar é uma referência da relação dos humanos com o solo e, portanto, com a terra, e simboliza ou metaforiza uma questão muito grave: os humanos nasceram da terra ou da união de um homem e de uma mulher? Se da terra, deveriam ser imortais. No entanto, morrem. Para exprimir a angústia de serem mortais e que os humanos, portanto, nasceram de um homem e de uma mulher e não da terra, o mito simboliza a mortalidade através da dificuldade para se relacionar com a terra, isto é, para andar (coxo, torto, inchado). Para exprimir a dificuldade de aceitar uma origem humana mortal, o mito simboliza a fragilidade das leis humanas fazendo Laio mandar matar seu filho Édipo, Édipo assassinar seu pai Laio e casar-se com sua mãe, Jocasta.
Em terceiro lugar, o mito estabelece relações entre os seres naturais e humanos, seja fazendo humanos nascerem, por exemplo, de animais, seja fazendo os astros decidirem a sorte e o destino dos humanos (como na astrologia), seja fazendo cores, metais e pedras definirem a natureza de um humano (como a magia, por exemplo).
Coisas e humanos se relacionam por participação, simpatia, antipatia, por formas secretas de ação à distância. O mundo é um tecido de laços e vínculos secretos que precisam ser decifrados e sobre os quais os homens podem adquirir algum poder por meio da imitação (vestir peles de animais, fabricar talismãs, ficar em certas posições, plantar fazendo certos gestos, pronunciar determinadas palavras). O mito decifra o secreto. O rito imita o poder.
Analogias e metáforas formam símbolos, isto é, imagens carregadas e saturadas de sentidos múltiplos e simultâneos, servindo para explicar coisas diferentes ou para substituir uma coisa por outra. Assim, por exemplo, o fogo pode simbolizar um deus, uma paixão, como o amor e a cólera (porque são ardentes), o conhecimento (porque este é uma iluminação), a purificação de alguma coisa (como na alquimia), o poder sobre a Natureza (porque permite o desenvolvimento das técnicas), a diferença entre os animais e os homens (porque estes cozem os alimentos enquanto aqueles os comem crus), etc.
A peculiaridade do símbolo mítico está no fato de ele encarnar aquilo que ele simboliza. Ou seja, o fogo não representa alguma coisa, mas é a própria coisa simbolizada: é deus, é amor, é guerra, é conhecimento, é pureza, é fabricação e purificação, é o humano.
O fato de o símbolo mítico não representar, mas encarnar aquilo que é significado por ele, leva a dizer (como faz Lévi-Strauss) que o pensamento mítico é um pensamento sensível e concreto, um pensamento onde imagens são coisas e onde coisas são idéias, onde as palavras dão existência ou morte às coisas (como vimos ao estudar a palavra mágica e a palavra-tabu).
Como funciona o pensamento conceitual
O pensamento conceitual ou lógico opera de maneira diferente e mesmo oposta à do pensamento mítico. A primeira e fundamental diferença está no fato de que enquanto o pensamento mítico opera por bricolage (associação dos fragmentos heterogêneos), o pensamento conceitual opera por método (procedimento lógico para a articulação racional entre elementos homogêneos). Dessa diferença resultam outras:
● um conceito ou uma idéia não é uma imagem nem um símbolo, mas uma descrição e uma explicação da essência ou natureza própria de um ser, referindo-se a esse ser e somente a ele;
● um conceito ou uma idéia não são substitutos para as coisas, mas a compreensão intelectual delas;
● um conceito ou uma idéia não são formas de participação ou de relação de nosso espírito em outra realidade, mas são resultado de uma análise ou de uma síntese dos dados da realidade ou do próprio pensamento;
● um juízo e um raciocínio não permanecem no nível da experiência, nem organizam a experiência nela mesma, mas, partindo dela, a sistematizam em relações racionais que a tornam compreensível do ponto de vista lógico;
● um juízo e um raciocínio buscam as causas universais e necessárias pelas quais uma realidade é tal como é, distinguindo o modo como ela nos aparece do modo como é em si mesma; as causas e os efeitos são homogêneos, isto é, são de mesma natureza;
● um juízo e um raciocínio estudam e investigam a diferença entre nossas vivências subjetivas, pessoais e coletivas, e os conhecimentos gerais e objetivos, que são de todos e de ninguém em particular. Estabelecem a diferença entre vivências subjetivas e a estrutura objetiva do pensamento em geral;
● o pensamento lógico submete seus procedimentos a métodos, isto é, a regras de verificação e de generalização dos conhecimentos adquiridos; a regras de ordenamento e sistematização dos procedimentos e dos resultados, de modo que um conhecimento novo não pode simplesmente acrescentar-se aos anteriores (como no bricolage), mas só se junta a eles se obedecer a certas regras e princípios intelectuais. Assim, por exemplo, a teoria física elaborada por Aristóteles não pode ser acrescida pela de Galileu, pois são contrárias; do mesmo modo, a física de Galileu e de Newton não podem ser acrescentadas à teoria da relatividade, mas podem apenas ser consideradas um caso especial da física, quando os objetos são macroscópicos e quando a separação entre o observador e o observado são possíveis.
O pensamento lógico ou racional (ou o pensamento objetivo) opera de acordo com os princípios de identidade, contradição, terceiro excluído, razão suficiente e causalidade; distingue verdades de fato e verdades de razão; diferencia intuição, dedução, indução e abdução; distingue análise e síntese; diferencia reflexão e verificação, teoria e prática, ciência e técnica.
Se compararmos a explicação cosmogônica e a cosmológica da realidade, tais como foram elaboradas na Grécia, perceberemos melhor a diferença entre as duas modalidades de pensamento.
O pensamento cosmogônico narrava a origem da Natureza através de genealogias divinas: as forças e os seres naturais estavam personalizados e simbolizados pelos deuses, titãs e heróis, cujas relações sexuais davam origem às coisas, aos homens, às estações do ano, ao dia e à noite, às colheitas, à sociedade. Suas paixões não correspondidas se exprimiam por raios, trovões, tempestades, tufões, desertos. Seus amores e desejos realizados manifestavam-se na abundância da primavera, das colheitas, da procriação dos animais.
O pensamento cosmológico explicava a origem da Natureza pela existência de um ou alguns elementos naturais (terra-seco, água-úmido, ar-frio, fogo-quente), que, por sua força interna natural, se transformavam, dando origem a todas as coisas e aos homens. Os primeiros filósofos consideravam os elementos originários como forças divinas, mas já não eram personalizadas, nem sua ação explicada por desejos, paixões e furores.
Aristóteles sistematizou lógica e racionalmente as cosmologias ou teorias sobre a Natureza numa física, isto é, numa teoria ou ciência sobre a matéria e a forma dos seres naturais e sobre as causas de seus movimentos.
Para os gregos, como vimos, movimento (kinesis) significa:
● toda mudança qualitativa de um ser qualquer (por exemplo, uma semente que se torna árvore, um objeto branco que amarelece, um animal que adoece, algo quente que esfria, algo frio que esquenta, o duro que amolece, o mole que endurece, etc.);
● toda mudança ou alteração quantitativa (por exemplo, um corpo que aumente e diminua, que se divida em outros menores, que encompride ou encurte, alargue ou estreite, etc.);
● toda mudança de lugar ou locomoção (subir, descer, cair, a trajetória de uma flecha, o deslocamento de um barco, a queda de uma pedra, o levitar de uma pluma, etc.);
● toda geração ou nascimento e toda corrupção ou morte dos seres.
Esses movimentos, diz Aristóteles, possuem causas, pois tudo o que existe possui causa, e o conhecimento verdadeiro é o conhecimento das causas. São quatro as causas dos movimentos:
1. causa material, isto é, a matéria de que alguma coisa é feita (madeira, pedra, metal, líquido);
2. causa formal, isto é, a forma que alguma coisa possui e que a individualiza e a diferencia das outras (a mesa é causa formal da madeira, a estátua é causa formal da pedra, a taça é causa formal do metal, o vinho é causa formal do líquido);
3. causa motriz ou eficiente, isto é, aquilo que faz uma matéria receber uma forma determinada (no caso dos objetos artificiais ou artefatos, a causa eficiente é o artesão – o carpinteiro que faz a mesa, o escultor que faz a estátua, o ferreiro que faz a taça, o vinicultor que faz o vinho; no caso dos seres naturais, a causa eficiente também é uma coisa natural – por exemplo, o calor derrete o metal, o Sol esquenta um corpo e lhe dá outra consistência ou forma, etc.);
4. causa final, isto é, o motivo ou finalidade para a qual a coisa existe, se transforma e se realiza (a mesa existe para que possamos usá-la para refeições, escrever, depositar objetos, etc.; a estátua, para o culto de um deus; a taça, para colocarmos bebidas; o vinho, para bebermos).
Com a física aristotélica vemos a Natureza tornar-se inteligível ao pensamento, que pode explicá-la, descrevê-la, compreendê-la e interpretá-la conceitualmente.



[i] Como já vimos, o juízo relaciona positiva ou negativamente um sujeito S e um predicado ou conjunto de predicados P; S é P; S não é P. Também relaciona S e P necessariamente: “Sócrates é mortal”; acidentalmente: “Sócrates é pequeno”; possivelmente: “Sócrates poderá vir à praça”, “Se não chover, Sócrates virá à praça”, etc.
[ii] Quando Édipo nasce, um vidente, Tirésias, prevê que o menino matará o pai e se casará com a mãe. Apavorado, o rei Laio – o pai – manda matar Édipo. O escravo que deveria matar o menino sente piedade e o lança num precipício sem verificar se está ou não morto; e entrega ao rei o coração de uma corça, como se fosse o de Édipo. A criança não morre e é recolhida por um pastor. Este, por sua vez, a entrega a um outro rei, que, idoso, lamentava não ter filhos. Ao crescer, Édipo suspeita que não é filho de seus pais adotivos e sai à procura dos pais verdadeiros. No caminho, vê uma batalha entre um grupo numeroso e um pequeno; coloca-se ao lado deste último e mata o chefe do outro grupo – seu pai, Laio. Chegando à sua cidade natal, fica sabendo que um monstro estava devorando as virgens e só interromperá a matança se alguém decifrar um enigma que propõe. Édipo decifra o enigma. Como recompensa, recebe a rainha em casamento. Casa-se com Jocasta, sem saber que se tratava de sua verdadeira mãe, e com ela tem filhos. A profecia se cumpre. A cidade será castigada com a peste e, ao tentar combatê-la, pedindo aos deuses que lhe digam o que a causou, Édipo fica sabendo, por Tirésias, que matou o pai e casou-se com a mãe. Fura os olhos e exila-se, enquanto Jocasta se suicida.

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