A linguagem A importância da linguagem
Convite à Filosofia
De Marilena Chaui
Ed. Ática, São Paulo, 2000.
De Marilena Chaui
Ed. Ática, São Paulo, 2000.
Unidade 4
O conhecimento
O conhecimento
Capítulo 5
A linguagem
A linguagem
A
importância da linguagem
Na abertura da sua obra Política,
Aristóteles afirma que somente o homem é um “animal político”, isto é, social e
cívico, porque somente ele é dotado de linguagem. Os outros animais, escreve
Aristóteles, possuem voz (phone) e com ela exprimem dor e prazer,
mas o homem possui a palavra (logos) e, com ela, exprime o bom e
o mau, o justo e o injusto. Exprimir e possuir em comum esses valores é o que
torna possível a vida social e política e, dela, somente os homens são capazes.
Segue a mesma linha o raciocínio de Rousseau
no primeiro capítulo do Ensaio sobre a origem das línguas:
A palavra distingue os homens dos animais; a
linguagem distingue as nações entre si. Não se sabe de onde é um homem antes
que ele tenha falado.
Escrevendo sobre a teoria da linguagem, o
lingüista Hjelmslev afirma que “a linguagem é inseparável do homem, segue-o em
todos os seus atos”, sendo “o instrumento graças ao qual o homem modela seu
pensamento, seus sentimentos, suas emoções, seus esforços, sua vontade e seus
atos, o instrumento graças ao qual ele influencia e é influenciado, a base mais
profunda da sociedade humana.”
Prosseguindo em sua apreciação sobre a
importância da linguagem, Rousseau considera que a linguagem nasce de uma
profunda necessidade de comunicação:
Desde que um homem foi reconhecido por outro
como um ser sensível, pensante e semelhante a si próprio, o desejo e a
necessidade de comunicar-lhe seus sentimentos e pensamentos fizeram-no buscar
meios para isso.
Gestos e vozes, na busca da expressão e da
comunicação, fizeram surgir a linguagem.
Por seu turno, Hjelmslev afirma que a
linguagem é “o recurso último e indispensável do homem, seu refúgio nas horas
solitárias em que o espírito luta contra a existência, e quando o conflito se
resolve no monólogo do poeta e na meditação do pensador.”
A linguagem, diz ele, está sempre à nossa
volta, sempre pronta a envolver nossos pensamentos e sentimentos,
acompanhando-nos em toda a nossa vida. Ela não é um simples acompanhamento do
pensamento, “mas sim um fio profundamente tecido na trama do pensamento”, é “o
tesouro da memória e a consciência vigilante transmitida de geração a geração”.
A linguagem é, assim, a forma propriamente
humana da comunicação, da relação com o mundo e com os outros, da vida social e
política, do pensamento e das artes.
No entanto, no diálogo Fedro, Platão
dizia que a linguagem é um pharmakon. Esta palavra grega, que em português
se traduz por poção, possui três sentidos principais: remédio, veneno e
cosmético.
Ou seja, Platão considerava que a linguagem
pode ser um medicamento ou um remédio para o conhecimento, pois, pelo diálogo e
pela comunicação, conseguimos descobrir nossa ignorância e aprender com os
outros. Pode, porém, ser um veneno quando, pela sedução das palavras, nos faz
aceitar, fascinados, o que vimos ou lemos, sem que indaguemos se tais palavras
são verdadeiras ou falsas. Enfim, a linguagem pode ser cosmético, maquiagem ou
máscara para dissimular ou ocultar a verdade sob as palavras. A linguagem pode
ser conhecimento-comunicação, mas também pode ser encantamento-sedução.
Essa mesma idéia da linguagem como
possibilidade de comunicação-conhecimento e de dissimulação-desconhecimento
aparece na Bíblia judaico-cristã, no mito da Torre de Babel [Gn 11.1-9], quando
Deus lançou a confusão entre os homens, fazendo com que perdessem a língua
comum e passassem a falar línguas diferentes, que impediam uma obra em comum, abrindo
as portas para todos os desentendimentos e guerras. A pluralidade das línguas é
explicada, na Escritura Sagrada, como punição porque os homens ousaram imaginar
que poderiam construir uma torre que alcançasse o céu, isto é, ousaram imaginar
que teriam um poder e um lugar semelhante ao da divindade. “Que sejam
confundidos”, disse Deus.
A
força da linguagem
Podemos avaliar a força da linguagem tomando
como exemplo os mitos e as religiões.
A palavra grega mythos, como já vimos,
significa narrativa e, portanto, linguagem. Trata-se da palavra que narra a
origem dos deuses, do mundo, dos homens, das técnicas (o fogo, a agricultura, a
caça, a pesca, o artesanato, a guerra) e da vida do grupo social ou da
comunidade. Pronunciados em momentos especiais – os momentos sagrados ou de
relação com o sagrado -, os mitos são mais do que uma simples narrativa; são a
maneira pela qual, através das palavras, os seres humanos organizam a realidade
e a interpretam.
O mito tem o poder de fazer com que as coisas
sejam tais como são ditas ou pronunciadas. O melhor exemplo dessa força
criadora da palavra mítica encontra-se na abertura da Gênese, na Bíblia
judaico-cristã, em que Deus cria o mundo do nada, apenas usando a linguagem: “E
Deus disse: faça-se!”, e foi feito. Porque Ele disse, foi feito.
A palavra divina é criadora.
Também vemos a força realizadora ou
concretizadora da linguagem nas liturgias religiosas. Por exemplo, na missa
cristã, o celebrante, pronunciando as palavras “Este é o meu corpo” e “Este é o
meu sangue”, realiza o mistério da Eucaristia, isto é, a encarnação de Deus no
pão e no vinho. Também nos rituais indígenas e africanos, os deuses e heróis
comparecem e se reúnem aos mortais quando invocados pelas palavras corretas,
pronunciadas pelo celebrante.
A linguagem tem, assim, um poder
encantatório, isto é, uma capacidade para reunir o sagrado e o profano, trazer
os deuses e as forças cósmicas para o meio do mundo, ou, como acontece com os
místicos em oração, tem o poder de levar os humanos até o interior do sagrado.
Eis por que, em quase todas as religiões, existem profetas e oráculos, isto é,
pessoas escolhidas pela divindade para transmitir mensagens divinas aos
humanos.
Esse poder encantatório da linguagem aparece,
por exemplo, quando vemos (ou lemos sobre) rituais de feitiçaria: a feiticeira
ou o feiticeiro tem a força para fazer coisas acontecerem pelo simples fato de,
em circunstâncias certas, pronunciarem determinadas palavras. É assim que, nas
lendas sobre o rei Artur e os cavaleiros da Távola Redonda, os feiticeiros
Merlin e Morgana decidem o destino das guerras, pronunciando palavras especiais
dotadas de poder. Também nos contos infantis há palavras poderosas (“Abre-te,
Sésamo!”, “Shazam!”) e encantatórias (“Abracadabra”). Essa dimensão maravilhosa
da linguagem da infância é explorada de maneira belíssima pelo cineasta
Federico Fellini no filme Oito e Meio, quando a personagem adulta
pronuncia as palavras “Asa Nisa Nasa”, trazendo de volta o passado.
As palavras assumem o poder contrário também,
isto é, criam tabus. Ou seja, há coisas que não podem ser ditas porque, se
forem, não só trazem desgraças, como ainda desgraçam quem as pronunciar. As
palavras-tabus existem nos contextos religiosos de várias sociedades (por
exemplo, em muitas sociedades não se deve pronunciar a palavra “demônio” ou
“diabo”, porque este aparece; em vez disso se diz “o cão”, “o demo”, “o
tinhoso”). As palavras-tabus não existem apenas na esfera religiosa, mas também
nos brinquedos infantis, quando certas palavras são proibidas a todos os
membros do grupo, sob pena de punição para quem as pronunciar.
Existem, ainda, palavras-tabus na vida
social, sob os efeitos da repressão dos costumes, sobretudo os que se referem a
práticas sexuais. Assim, para certos grupos sociais de nossa sociedade e mesmo
para nossa sociedade inteira, até os anos 60 do século passado, eram proibidas
palavras como puta, homossexual, aborto, amante, masturbação, sexo oral, sexo
anal, etc. Tais palavras eram pronunciadas em meios masculinos e em locais
privados ou íntimos. Também palavras de cunho político tendem a tornar-se quase
tabus: revolucionário, terrorista, guerrilheiro, socialista, comunista, etc.
O poder mágico-religioso da palavra aparece
ainda num outro contexto: o do direito. Na origem, o direito não era um código
de leis referentes à propriedade (de coisas ou bens, do corpo e da
consciência), nem referentes à vida política (impostos, constituições, direitos
sociais, civis, políticos), mas era um ato solene no qual o juiz pronunciava
uma fórmula pela qual duas partes em conflito fariam a paz.
O direito era uma linguagem solene de
fórmulas conhecidas pelo árbitro e reconhecidas pelas partes em litígio. Era o
juramento pronunciado pelo juiz e acatado pelas partes. Donde as expressões
“Dou minha palavra” ou “Ele deu sua palavra”, para indicar o juramento feito e
a “palavra empenhada” ou “palavra de honra”. É por isso também que, até hoje,
nos tribunais, se faz o(a) acusado(a) e as testemunhas responderem à pergunta:
“Jura dizer a verdade, somente a verdade, nada além da verdade?”, dizendo:
“Juro”. Razão pela qual o perjúrio – dizer o falso, sob juramento de dizer o
verdadeiro – é considerado crime gravíssimo.
Nas sociedades menos complexas do que a
nossa, isto é, nas sociedades que são comunidades, onde todos se conhecem pelo
primeiro nome e se encontram todos os dias ou com freqüência, a palavra dada e
empenhada é suficiente, pois, quando alguém dá sua palavra, dá sua vida, sua
consciência, sua honra e assume um compromisso que só poderá ser desfeito com a
morte ou com o acordo da outra parte. É por isso que, nos casamentos
religiosos, em que os noivos fazem parte da comunidade, basta que digam
solenemente ao celebrante “Aceito”, para que o casamento esteja concretizado.
Independentemente de acreditarmos ou não em palavras
místicas, mágicas, encantatórias ou tabus, o importante é que existam, pois sua
existência revela o poder que atribuímos à linguagem. Esse poder decorre do
fato de que as palavras são núcleos, sínteses ou feixes de significações,
símbolos e valores que determinam o modo como interpretamos as forças divinas,
naturais, sociais e políticas e suas relações conosco.
A
outra dimensão da linguagem
Para referir-se à palavra e à linguagem, os
gregos possuíam duas palavras: mythos e logos. Diferentemente do mythos,
logos é uma síntese de três palavras ou idéias: fala/palavra,
pensamento/idéia e realidade/ser. Logos é a palavra racional do
conhecimento do real. É discurso (ou seja, argumento e prova), pensamento (ou
seja, raciocínio e demonstração) e realidade (ou seja, os nexos e ligações
universais e necessários entre os seres).
É a palavra-pensamento compartilhada:
diálogo; é a palavra-pensamento verdadeira: lógica; é a palavra-pensamento de
alguma coisa: o “logia” que colocamos no final de palavras como cosmologia,
mitologia, teologia, ontologia, biologia, psicologia, sociologia, antropologia,
tecnologia, filologia, farmacologia, etc.
Do lado do logos desenvolve-se a
linguagem como poder de conhecimento racional e as palavras, agora, são conceitos
ou idéias, estando referidas ao pensamento, à razão e à verdade.
Essa dupla dimensão da linguagem (como mythos
e logos) explica por que, na sociedade ocidental, podemos comunicar-nos
e interpretar o mundo sempre em dois registros contrários e opostos: o da
palavra solene, mágica, religiosa, artística, e o da palavra leiga, científica,
técnica, puramente racional e conceitual. Não por acaso, muitos filósofos das
ciências afirmam que uma ciência nasce ou um objeto se torna científico quando
uma explicação que era religiosa, mágica, artística, mítica cede lugar a uma
explicação conceitual, causal, metódica, demonstrativa, racional.
A
origem da linguagem
Durante muito tempo a Filosofia preocupou-se
em definir a origem e as causas da linguagem.
Uma primeira divergência sobre o assunto
surgiu na Grécia: a linguagem é natural aos homens (existe por natureza) ou é
uma convenção social? Se a linguagem for natural, as palavras possuem um
sentido próprio e necessário; se for convencional, são decisões consensuais da
sociedade e, nesse caso, são arbitrárias, isto é, a sociedade poderia ter
escolhido outras palavras para designar as coisas. Essa discussão levou,
séculos mais tarde, à seguinte conclusão: a linguagem como capacidade de
expressão dos seres humanos é natural, isto é, os humanos nascem com uma
aparelhagem física, anatômica, nervosa e cerebral que lhes permite
expressarem-se pela palavra; mas as línguas são convencionais, isto é,
surgem de condições históricas, geográficas, econômicas e políticas
determinadas, ou, em outros termos, são fatos culturais. Uma vez constituída
uma língua, ela se torna uma estrutura ou um sistema dotado de necessidade
interna, passando a funcionar como se fosse algo natural, isto é, como algo que
possui suas leis e princípios próprios, independentes dos sujeitos falantes que
a empregam.
Perguntar pela origem da linguagem levou a
quatro tipos de respostas:
1. a linguagem nasce por imitação, isto é, os
humanos imitam, pela voz, os sons da Natureza (dos animais, dos rios, das
cascatas e dos mares, do trovão e do vulcão, dos ventos, etc.). A origem da
linguagem seria, portanto, a onomatopéia ou imitação dos sons animais e
naturais;
2. a linguagem nasce por imitação dos gestos,
isto é, nasce como uma espécie de pantomima ou encenação, na qual o gesto indica
um sentido. Pouco a pouco, o gesto passou a ser acompanhado de sons e estes se
tornaram gradualmente palavras, substituindo os gestos;
3. a linguagem nasce da necessidade: a fome,
a sede, a necessidade de abrigar-se e proteger-se, a necessidade de reunir-se
em grupo para defender-se das intempéries, dos animais e de outros homens mais
fortes levaram à criação de palavras, formando um vocabulário elementar e
rudimentar, que, gradativamente, tornou-se mais complexo e transformou-se numa
língua;
4. a linguagem nasce das emoções,
particularmente do grito (medo, surpresa ou alegria), do choro (dor, medo,
compaixão) e do riso (prazer, bem-estar, felicidade). Citando novamente
Rousseau em seu Ensaio sobre a origem das línguas:
Não é a fome ou a sede, mas o amor ou o ódio,
a piedade, a cólera, que aos primeiros homens lhes arrancaram as primeiras
vozes… Eis por que as primeiras línguas foram cantantes e apaixonadas antes de
serem simples e metódicas.
Assim, a linguagem, nascendo das paixões, foi
primeiro linguagem figurada e por isso surgiu como poesia e canto, tornando-se
prosa muito depois; e as vogais nasceram antes das consoantes. Assim como a
pintura nasceu antes da escrita, assim também os homens primeiro cantaram seus
sentimentos e só muito depois exprimiram seus pensamentos.
Essas teorias não são excludentes. É muito
possível que a linguagem tenha nascido de todas essas fontes ou modos de
expressão, e os estudos de Psicologia Genética (isto é, da gênese da percepção,
imaginação, memória, linguagem e inteligência nas crianças) mostra que uma
criança se vale de todos esses meios para começar a exprimir-se. Uma linguagem
se constitui quando passa dos meios de expressão aos de significação, ou quando
passa do expressivo ao significativo. Um gesto ou um grito exprimem, por
exemplo, medo; palavras, frases e enunciados significam o que é sentir medo,
dão conteúdo ao medo.
O
que é a linguagem?
A linguagem é um sistema de signos ou sinais
usados para indicar coisas, para a comunicação entre pessoas e para a expressão
de idéias, valores e sentimentos. Embora tão simples, essa definição da
linguagem esconde problemas complicados com os quais os filósofos têm-se
ocupado desde há muito tempo. Essa definição afirma que:
1. a linguagem é um sistema, isto é, uma
totalidade estruturada, com princípios e leis próprios, sistema esse que pode
ser conhecido;
2. a linguagem é um sistema de sinais ou de
signos, isto é, os elementos que formam a totalidade lingüística são um tipo
especial de objetos, os signos, ou objetos que indicam outros, designam
outros ou representam outros. Por exemplo, a fumaça é um signo ou sinal de
fogo, a cicatriz é signo ou sinal de uma ferida, manchas na pele de um
determinado formato, tamanho e cor são signos de sarampo ou de catapora, etc.
No caso da linguagem, os signos são palavras e os componentes das palavras
(sons ou letras);
3. a linguagem indica coisas, isto é, os
signos lingüísticos (as palavras) possuem uma função indicativa ou denotativa,
pois como que apontam para as coisas que significam;
4. a linguagem tem uma função comunicativa,
isto é, por meio das palavras entramos em relação com os outros, dialogamos,
argumentamos, persuadimos, relatamos, discutimos, amamos e odiamos, ensinamos e
aprendemos, etc.;
5. a linguagem exprime pensamentos, sentimentos
e valores, isto é, possui uma função de conhecimento e de expressão, sendo
neste caso conotativa, ou seja, uma mesma palavra pode exprimir sentidos
ou significados diferentes, dependendo do sujeito que a emprega, do sujeito que
a ouve e lê, das condições ou circunstâncias em que foi empregada ou do
contexto em que é usada. Assim, por exemplo, a palavra água, se for
usada por um professor numa aula de química, conotará o elemento químico que
corresponde à fórmula H2O; se for empregada por um poeta, pode
conotar rios, chuvas, lágrimas, mar, líquido, pureza, etc.; se for empregada
por uma criança que chora pode estar indicando uma carência ou necessidade como
a sede.
A definição nos diz, portanto, que a
linguagem é um sistema de sinais com função indicativa, comunicativa,
expressiva e conotativa.
No entanto, essa definição não nos diz várias
coisas. Por exemplo, como a fala se forma em nós? Por que a linguagem pode
indicar coisas externas e também exprimir idéias (internas ao pensamento)? Por
que a linguagem pode ser diferente quando falada pelo cientista, pelo filósofo,
pelo poeta ou pelo político? Como a linguagem pode ser fonte de engano, de
mal-entendido, de controvérsia ou de mentira? O que se passa exatamente quando
dialogamos com alguém? O que é escrever? E ler? Como podemos aprender uma outra
língua?
Na resposta a várias dessas perguntas, vamos
encontrar uma divergência que já encontramos quando estudamos a razão, a
verdade, a percepção ou a imaginação, qual seja, a diferença entre empiristas e
intelectualistas.
Empiristas
e intelectualistas diante da linguagem
Para os empiristas, a linguagem é um conjunto
de imagens corporais e mentais formadas por associação e repetição e que
constituem imagens verbais (as palavras).
As imagens corporais são de dois tipos:
motoras e sensoriais. As imagens motoras são as que adquirimos quando
aprendemos a articular sons (falar) e letras (escrever), graças a mecanismos
anatômicos e fisiológicos. As imagens sensoriais são as que adquirimos quando,
graças aos nossos sentidos, à fisiologia de nosso sistema nervoso, sobretudo a
de nosso cérebro, aprendemos a ouvir (compreender sons e vozes) e a reconhecer
a grafia dos sons (ler). As imagens verbais são aprendidas por associação, em
função da freqüência e repetição dos sinais externos que estimulam nossa
capacidade motriz e sensorial. A palavra ou imagem verbal é uma síntese de
imagens motoras e sensoriais armazenadas em nosso cérebro.
O que levou a essa concepção empirista da
linguagem foi o estudo médico de “perturbações da linguagem”: a afasia
(incapacidade para usar e compreender todas as palavras disponíveis na língua);
a agrafia (incapacidade para escrever ou para escrever determinadas palavras);
a surdez verbal (ouvir as palavras sem conseguir compreendê-las) e a cegueira
verbal (ler sem conseguir entender).
Os médicos que estudaram essas perturbações
concluíram que estavam relacionadas com lesões no cérebro e que, portanto, a
linguagem era um fenômeno físico (anatômico e fisiológico) do qual não temos
consciência (desconhecemos suas causas), mas de cujos efeitos temos
consciência, isto é, falamos, ouvimos, escrevemos, lemos e compreendemos o
sentido das palavras. A linguagem seria uma soma de causas físicas e de efeitos
psíquicos cujos átomos ou elementos seriam as imagens verbais associadas.
Os intelectualistas, porém, apresentam uma
concepção muito diferente desta. Embora aceitem que a possibilidade para
falar, ouvir, escrever e ler esteja em nosso corpo (anatomia e fisiologia)
afirmam que a capacidade para a linguagem é um fato do pensamento ou de
nossa consciência. A linguagem, dizem eles, é apenas a tradução auditiva, oral,
gráfica ou visível de nosso pensamento e de nossos sentimentos. A linguagem é
um instrumento do pensamento para exprimir conceitos e símbolos, para
transmitir e comunicar idéias abstratas e valores. A palavra, dizem eles, é uma
representação de um pensamento, de uma idéia ou de valores, sendo produzida
pelo sujeito pensante que usa os sons e as letras com essa finalidade.
O pensamento puro seria silencioso ou mudo e
formaria, para manifestar-se, as palavras. Duas provas poderiam confirmar essa
concepção da linguagem: o fato de que o pensamento procura e inventa palavras;
e o fato de que podemos aprender outras línguas, porque o sentido de duas palavras
diferentes em duas línguas diferentes é o mesmo e tal sentido é a idéia formada
pelo pensamento para representar ou indicar as coisas.
A grande prova dos intelectualistas contra os
empiristas foi a história de Helen Keller. Nascida cega, surda e muda, Helen
Keller aprendeu a usar a linguagem sem nunca ter visto as coisas e as palavras,
sem nunca ter escutado ou emitido um som. Se a linguagem dependesse
exclusivamente de mecanismos e disposições corporais, Helen Keller jamais teria
chegado à linguagem.
Mas chegou. E chegou quando compreendeu a
relação simbólica entre duas expressões diferentes: numa das mãos, sentia
correr a água de uma torneira, enquanto a outra mão, na qual segurava uma
agulha, guiada por sua professora, ia traçando a palavra água; quando se
tornou capaz de compreender que uma mão traduzia o que a outra sentia,
tornou-se capaz de usar a linguagem. Assim, a linguagem, longe de ser um
mecanismo instintivo e biológico, seria um fato puro da inteligência, uma
atividade intelectual simbólica e de compreensão, uma pura tradução de
pensamentos.
As concepções empirista e intelectualista,
apesar de suas divergências, possuem dois pontos em comum:
1. ambas consideram a linguagem como sendo
fundamentalmente indicativa ou denotativa, isto é, os signos lingüísticos ou as
palavras servem apenas para indicar coisas;
2. ambas consideram a linguagem como um
instrumento de representação das coisas e das idéias, ou seja, as palavras têm
apenas uma função ou um uso instrumental representativo.
Esses dois pontos de concordância fazem com
que, para as duas correntes filosóficas, os aspectos conotativos ou a função
conotativa da linguagem seja considerada algo perturbador e negativo. Em outros
termos, o fato de que a comunicação verbal se realize com as palavras assumindo
sentidos diferentes, dependendo de quem fala e ouve, escreve e lê, do contexto
e das circunstâncias em que as enunciamos, é considerado perturbador porque,
afinal, as coisas são sempre o que elas são e as idéias são sempre o que elas
são, de modo que as palavras deveriam ter sempre um só e mesmo sentido para
indicar claramente as coisas e representar claramente as idéias.
Por esse motivo, periodicamente, aparecem na
Filosofia correntes filosóficas que se preocupam em “purificar” a linguagem
para que ela sirva docilmente às representações conceituais. Tais correntes
julgam que a linguagem perfeita para o pensamento é a das ciências e,
particularmente, a da matemática e a da física.
Purificar
a linguagem
Uma dessas correntes filosóficas
desenvolveu-se no século passado com o nome de positivismo lógico. Os
positivistas lógicos distinguiram duas linguagens:
1. a linguagem natural, isto é, aquela que
usamos todos os dias e que é imprecisa, confusa, mescla de elementos afetivos,
volitivos, perceptivos e imaginativos;
2. a linguagem lógica, isto é, uma linguagem
purificada, formalizada (ou seja, com enunciados sem conteúdo e avaliadores do
conteúdo das linguagens científicas e filosóficas), inspirada na matemática e
sobretudo na física.
Essa linguagem obedecia a princípios e regras
lógicas precisas e funcionava por meio de operações chamadas cálculos
simbólicos (semelhantes às operações da matemática), que permitiam avaliar com
exatidão se um enunciado era verdadeiro ou falso. Dava-se ênfase à sintaxe
lógica dos enunciados, que asseguraria a verdade representativa e
indicativa da linguagem. A conotação foi afastada.
A linguagem lógica era uma metalinguagem,
isto é, uma segunda linguagem que falava sobre língua natural e sobre linguagem
científica para saber se os enunciados delas eram verdadeiros ou falsos. Assim,
por exemplo, na linguagem comum e diária dizemos: “O livro é de autoria de José
Antônio Silva” e, na metalinguagem lógica, diremos: “A proposição ‘O livro é de
autoria de José Antônio Silva’ é uma proposição verdadeira se e somente se
forem preenchidas as condições x, y, z”.
No entanto, descobriu-se, pouco a pouco, que
havia expressões lingüísticas que não possuíam caráter denotativo nem
representativo, e, apesar disto, eram verdadeiras. Descobriu-se também que
havia inúmeras formas de linguagem que não podiam ser reduzidas aos enunciados
lógicos e tipo matemático e físico. Descobriu-se, ainda, que a linguagem usa
certas expressões para as quais não existe denotação. Por exemplo, as
preposições e as conjunções só têm existência na linguagem e não na realidade.
Além disso, descobriu-se que a redução da
linguagem ao cálculo simbólico ou lógico despojava de qualquer verdade e de
qualquer pretensão ao conhecimento a ontologia, a literatura, a história, bem como
várias ciências humanas, isto é, todas as linguagens que são profundamente
conotativas, para as quais a multiplicidade de sentido das palavras e das
coisas é sua própria razão de ser.
Crítica
ao empirismo e ao intelectualismo
As concepções empiristas e intelectualistas
também sofreram sérias críticas dos estudiosos da linguagem no campo da
psicologia.
Os psicólogos Goldstein e Gelb fizeram
estudos aprofundados da afasia e descobriram situações curiosas. Por exemplo,
ordena-se a um afásico: “Coloque nesta pilha todas as fitas azuis que você
encontrar nesta caixa”. O afásico inicia a separação. Ao encontrar uma fita
azul-claro ele a coloca na pilha das fitas azuis, conforme lhe foi dito, mas
também passa a colocar ali fitas verde-claro, rosa-claro e lilás-claro.
Os dois psicólogos observaram, assim, que a
palavra azul não formava uma categoria ou uma idéia geral para o afásico
e que, portanto, seu problema de linguagem era também um problema de
pensamento. No entanto, do ponto de vista cerebral ou anatômico, a parte do
cérebro destinada à inteligência estava perfeita, sem nenhuma lesão. Com isso,
compreendeu-se que os empiristas estavam enganados e que a linguagem não é um
mero conjunto de imagens verbais, mas é inseparável de uma visão mais global da
realidade e inseparável do pensamento.
Esses estudos, porém, não reforçaram a
concepção intelectualista, como poderíamos supor. De fato, basta tentarmos
imaginar o que seria um pensamento puro, mudo, silencioso para compreendermos
que não seria nada, não pensaria nada. Não pensamos sem palavras, não há
pensamento antes e fora da linguagem, as palavras não traduzem pensamentos, mas
os envolvem e os englobam. É justamente por isso que a criança aprende a falar
e a pensar ao mesmo tempo, pois, para ela, uma coisa se torna conhecida e
pensável ao receber um nome. Como escreveu Merleau-Ponty, a linguagem é o corpo
do pensamento.
A
lingüística e a linguagem
Durante o século XIX, o estudo da linguagem
ou lingüística tinha como preocupação encontrar a origem da linguagem e das
línguas, considerando o estado presente ou atual de uma língua como resultado
ou efeito de causas situadas no passado.
A linguagem era estudada sob duas
perspectivas: a da filologia, que buscava a história das palavras pelo estudo
das raízes, com o propósito de chegar a uma única língua original, mãe
ou matriz de todas as outras; e a da gramática comparada, que estudava
comparativamente as línguas existentes com o propósito de encontrar famílias
lingüísticas e chegar à língua-mãe original.
Nesses estudos, retomava-se a discussão sobre
o caráter natural ou convencional da linguagem. Também era comum aos filólogos
e gramáticos a idéia de que as línguas se transformam no tempo e que as
transformações eram causadas por fatores extralingüísticos (migrações, guerras,
invasões, mudanças sociais e econômicas, etc.).
Tais estudos, porém, viram-se diante de
problemas que não conseguiam resolver. Um desses problemas foi o aparecimento
do estudo das flexões (tempos verbais, maneira de indicar o plural e o singular,
aumentativos e diminutivos, declinações), revelando que as línguas mudavam por
razões internas e não por fatores externos.
Essa descoberta teve resultados curiosos. Um
deles, aparecido na Alemanha, tomava as flexões como prova de que cada povo tem
uma língua diferente porque esta exprimiria o caráter ou o espírito do povo.
Haveria línguas doces e propícias aos sentimentos profundos (como a alemã);
línguas rudes e mais voltadas para a prosa e a guerra (como o latim), etc. Em
suma, cada estudioso inventava o “caráter da língua” segundo as fantasias e
ideologias de sua nação e dos nacionalismos da época.
A partir do século XX, uma nova concepção da
linguagem foi elaborada pela lingüística e seus pontos principais são:
● a linguagem é constituída pela distinção
entre língua e fala ou palavra: a língua é uma instituição social e um sistema,
ou uma estrutura objetiva que existe com suas regras e princípios próprios,
enquanto a fala ou palavra é o ato individual de uso da língua, tendo
existência subjetiva por ser o modo como os sujeitos falantes se apropriam da
língua e a empregam. Assim, por exemplo, temos a língua portuguesa e a palavra
ou fala de Camões, Machado de Assis, Fernando Pessoa, Guimarães Rosa, a sua e a
minha;
● a língua é uma totalidade dotada de sentido
no qual o todo confere sentido às partes, isto é, as partes não existem
isoladas nem somadas, mas apenas pela posição e função que o todo da língua
lhes dá e seu sentido vem dessa posição e dessa função. Assim, por exemplo, os
signos r e l só existem nas línguas onde a diferença desses sons
tem uma função importante para diferenciar sentidos, motivo pelo qual não
operam significativamente em chinês e em japonês (ou seja, os chineses usam l
indiferentemente para todas as palavras, sejam elas em l ou r; os
japoneses usam r indiferentemente para todas as palavras, sejam elas em l
ou r). Os signos são os elementos da língua; são valores e não coisas ou
entidades, isto é, são o que valem por sua posição e por sua diferença com
relação aos demais signos;
● numa língua, distinguem-se signo e
significado, ou significante e significado: o signo é o elemento verbal
material da língua (r, l, p, b, q, g,
por exemplo), enquanto o significado são os conteúdos ou sentidos imateriais
(afetivos, volitivos, perceptivos, imaginativos, evocativos, literários,
científicos, retóricos, filosóficos, políticos, religiosos, etc.) veiculados
pelos signos; o significante é uma cadeia ou um grupo organizado de signos
(palavras, frases, orações, proposições, enunciados) que permitem a expressão
dos significados e garantem a comunicação;
● a relação dos signos ou significantes com
as coisas é convencional e arbitrária, mas, uma vez constituída a língua como
sistema de relações entre signos/significantes e significados, a relação com as
coisas indicadas, nomeadas, expressadas ou comunicadas torna-se uma relação
necessária para todos os falantes da língua. Assim, por exemplo, a distinção
entre pa e ba, pata e bata é convencional, mas uma
vez fixada pela língua, torna-se necessária e inquestionável;
● como as partes (signos ou significantes) de
uma língua recebem seu sentido e sua função pelo lugar que o todo da língua
lhes confere, essas partes distinguem-se umas das outras apenas por suas
diferenças, e a língua é uma estrutura constituída por diferenças internas ou
por oposições pertinentes entre os signos. Por exemplo, em português,
existem os signos p e b, d e t porque suas
diferenças são pertinentes para o sentido das palavras (dizer pata e bata,
dente e tente é dizer sentidos diferentes); também existe a
oposição pertinente entre o r e o l, mas tal oposição ou
diferença não existe em japonês e em chinês e por isso, como vimos, tais signos
não existem nessas línguas.
Por relação com sua própria língua, quando um
japonês fala o português, é levado a usar sempre o r (que corresponde a
um som ou signo diferencial existente em japonês, isto é, faz sentido em
japonês) e a substituir o l por r. Quando um chinês fala o
português ocorre exatamente o contrário, prevalece o l porque este som e
signo tem relação com o todo da língua chinesa, e o r não. Em inglês,
não existe o signo-som ão e, assim, quando um inglês fala o português,
tende a usar an e am porque são signos-sons que fazem sentido em
inglês. A língua, portanto, é feita dessas diferenças internas e por isso se
diz que os signos são diacríticos e que a língua é uma estrutura diacrítica;
● a língua é um código (conjunto de
regras que permitem produzir informação e comunicação) e se realiza através de mensagens,
isto é, pela fala/palavra dos sujeitos que veiculam informações e se comunicam
de modo específico e particular (a mensagem possui um emissor, aquele
que emite ou envia a mensagem, e um receptor, aquele que recebe e
decodifica a mensagem, isto é, entende o que foi emitido);
● o sujeito falante possui duas capacidades:
a competência (isto é, sabe usar a língua) e a performance (isto
é, tem seu jeito pessoal e individual de usar a língua); a competência é a
participação do sujeito em uma comunidade lingüística e a performance são os
atos de linguagem que realiza;
● a língua se realiza em duas dimensões: a sincronia,
ou seja, o todo da língua tomado na simultaneidade ou no seu estado atual ou
presente; e a diacronia, ou seja, a língua vista sucessivamente, através
de suas mudanças no tempo ou de sua história;
● a língua é inconsciente, isto é, nós a
falamos sem ter consciência de sua estrutura, de suas regras e seus princípios,
de suas funções e diferenças internas; vivemos nela e com ela e a empregamos
sem necessidade de conhecê-la cientificamente.
Alguns exemplos poderão ajudar-nos a
compreender todos esses pontos. Uma língua é como um jogo de xadrez: é um todo
no qual cada peça tem seu sentido, seu lugar e sua função por diferença ou por
oposição às demais peças. O jogo é uma convenção ou um código com suas regras
próprias, princípios e leis, e cada partida é a maneira como jogadores individuais
usam e interpretam as regras, leis e princípios gerais do jogo (a diferença
entre os jogadores e os sujeitos falantes é que estes falam a língua
respeitando o código, mas sem conhecê-lo conscientemente, enquanto os jogadores
precisam conhecer o código para poder jogar).
O jogo existe antes e depois de cada partida.
Cada partida rearranja o tabuleiro e chega a resultados diferentes, mas as
regras do jogo são sempre as mesmas. Em cada partida, os jogadores podem jogar
porque conhecem o código e porque sabem interpretar os lances um do outro,
respondendo a cada um deles.
A lingüística veio mostrar algo muito
interessante e que explica por que falar uma língua estrangeira ou traduzir um
texto estrangeiro não são coisas simples como julgavam os intelectualistas.
Por exemplo, em inglês, é possível dizer “The
man I love”. Quando traduzimos para o português temos: “O homem que amo”.
Observamos que, em inglês, parece “faltar” uma palavra: o “que”. Notamos também
que em inglês parece “sobrar” uma palavra: o “I”, o “eu”, que não usamos na
frase em português. Para um inglês, evidentemente, não falta e nem sobra nada.
Este sentimento de falta ou sobra mostra que
a diferença entre o inglês e o português não é de vocabulário, mas de estrutura
lingüística. No caso da tradução da palavra inglesa cheese e da palavra
francesa fromage para o português, queijo, temos a impressão de
que passamos sem problema de uma língua para outra. Mas não é o caso.
Quando um inglês usa cheese, ele está
se referindo ou a algo leitoso e cremoso, quase sem gosto, ou a algo mais duro
e forte, que se pode comer sem outra coisa. O francês, por seu turno, ao dizer fromage
estará pensando em queijos muito diferentes, dependendo da região onde mora, da
hora e do dia em que vai comer o queijo, sempre acompanhado de pão e vinho.
Para um inglês e para um francês, queijo
jamais poderia ser imaginado junto com um doce, enquanto para nós, brasileiros,
queijo (de Minas, prato, requeijão baiano) vai bem com goiabada ou com doce de
leite, com o pão com manteiga e o café com leite. Assim dizer cheese não
é dizer fromage nem queijo; dizer fromage não é dizer cheese
nem queijo; dizer queijo não é dizer cheese nem fromage.
Esse segundo exemplo explica o que os
lingüistas querem dizer quando afirmam que o momento da criação de um signo (cheese,
fromage, queijo) é arbitrário ou convencional, mas, uma vez criado,
passa a ter um sentido necessário naquela língua (cheese é cheese
e não é fromage nem queijo).
Esse exemplo nos mostra também que uma língua
é algo social, histórico, determinado por condições específicas de uma
sociedade e de uma cultura.
A
experiência da linguagem
Dizer que somos seres falantes significa
dizer que temos e somos linguagem, que ela é uma criação humana (uma
instituição sociocultural), ao mesmo tempo em que nos cria como humanos (seres
sociais e culturais). A linguagem é nossa via de acesso ao mundo e ao
pensamento, ela nos envolve e nos habita, assim como a envolvemos e a
habitamos. Ter experiência da linguagem é ter uma experiência espantosa:
emitimos e ouvimos sons, escrevemos e lemos letras, mas, sem que saibamos como,
experimentamos sentidos, significados, significações, emoções, desejos, idéias.
Após o caminho feito até aqui, podemos voltar
à definição inicial que demos da linguagem e nela fazer alguns acréscimos.
Em primeiro lugar, teremos que especificar
melhor que tipo de signo é o signo lingüístico. Por que uma palavra é
diferente, por exemplo, da fumaça que indica fogo? Ou, se se preferir, qual é a
diferença entre a fumaça-signo-de-fogo, que vejo, e a palavra fumaça,
que pronuncio ou escuto? A fumaça é uma coisa que indica outra coisa (fogo). A
palavra fumaça, porém, é um símbolo, isto é, algo que indica,
representa, exprime alguma coisa que é de natureza diferente dela.
O símbolo é um análogo (a bandeira simboliza
a nação, por exemplo) e não um efeito da coisa indicada, representada ou
exprimida. O símbolo verbal ou palavra me reenvia a coisas que não são
palavras: coisas materiais, idéias, pessoas, valores, seres inexistentes, etc.
A linguagem é simbólica e, pelas palavras, nos coloca em relação com o ausente.
A linguagem é, pois, inseparável da imaginação.
Em segundo lugar, temos que especificar
melhor as várias funções que atribuímos à linguagem (indicativa ou denotativa,
comunicativa, expressiva, conotativa) e para isso precisamos indagar com o que
a linguagem se relaciona e nos relaciona. Evidentemente, diremos que a
linguagem nos relaciona com o mundo e com os outros seres humanos. Mas como se
dá essa relação?
Essa pergunta, como vimos, era central para o
Positivismo Lógico. Por seus erros e acertos, ele foi responsável pelo
surgimento de uma nova disciplina filosófica, a Filosofia da Linguagem,
intimamente ligada às investigações lógicas, transformando-se com elas e graças
a elas. A grande preocupação da Filosofia da Linguagem resume-se numa pergunta:
As palavras realmente dizem as coisas tais como são? Descrevem e explicam
verdadeiramente a realidade?
Tradicionalmente, dizia-se que a linguagem
possuía a forma de uma relação binária, isto é, entre dois termos:
signo verbal
<-> coisa indicada
(realidade)
signo verbal
<-> idéia, conceito, valor
(pensamento)
No entanto, é possível perceber que essa
relação binária não nos explica por que uma palavra ou um signo verbal
indica alguma coisa ou alguma idéia, pois, se ele fosse simplesmente denotativo
ou indicativo e dual, não poderia haver o fenômeno da conotação, isto é, uma
mesma palavra indicando coisas e idéias diferentes.
Tomemos um exemplo a que já nos referimos
várias vezes em outros capítulos e que foi muito trabalhado pelo filósofo
alemão Frege. “Estrela da manhã” e “estrela da tarde” indicam Vênus. Mas falar
na estrela d’alva, na estrela da tarde, na estrela matutina e na estrela
vespertina não é a mesma coisa, ainda que todas essas expressões se refiram a
Vênus. Em cada uma dessas expressões, o sentido de Vênus muda e esse
sentido é expresso pelas palavras que se referem ao mesmo planeta. Assim, as
palavras indicam-denotam alguma coisa, mas também a conotam, isto é, referem-se
aos sentidos dessa coisa.
Imaginemos ou recordemos a leitura de um
romance. Começamos a ler entendendo tudo o que o escritor escreveu porque
referimos suas palavras a coisas que já conhecemos, a idéias que já possuímos e
ao vocabulário comum entre ele e nós. Pouco a pouco, porém, o livro vai
ganhando espessura própria, percebemos as coisas de outra maneira, mudamos
idéias que já tínhamos, vemos surgir pessoas (personagens) com vida própria e
história própria, sentimos que as palavras significam de um modo diferente
daquele com o qual estamos habituados a usá-las todo dia.
Uma realidade foi criada e penetramos em seu
interior exclusivamente pelas mãos do escritor. Como isso é possível? Como as
palavras poderiam criar um mundo, se elas apenas fossem sinais para indicar
coisas e idéias já existentes? Com o romance descobrimos que as palavras se
referem a significações, inventam significações, criam significações.
Imaginemos ou recordemos um diálogo. Quantas
vezes conversando com alguém, dizemos: “Puxa! Eu nunca tinha pensado nisso!”,
ou então: “Você sabe que, agora, eu entendo melhor uma idéia que tinha, mas que
não entendia muito bem?”, ou ainda: “Você me fez compreender uma coisa que eu
sabia e não sabia que sabia”.
Como essas frases são possíveis? É que a
linguagem tem a capacidade especial de nos fazer pensar enquanto falamos e
ouvimos, nos faz compreender nossos próprios pensamentos tanto quanto os dos
outros que falam conosco. Ela nos faz pensar e nos dá o que pensar porque se
refere a significados, tanto os já conhecidos por outros quanto os já
conhecidos por nós, bem como os que não conhecíamos por estarmos conversando.
Esses exemplos nos levam a considerar a
linguagem sob uma forma ternária:
palavra ou signo significante <->
sentido ou significação; significado
<-> realidade ou mundo
(coisas, pessoas) e instituições sociais, políticas, culturais
O mundo suscita sentidos e palavras, as
significações levam à criação de novas expressões lingüísticas, a linguagem
cria novos sentidos e interpreta o mundo de maneiras novas. Há um vai-e-vem
contínuo entre as palavras e as coisas, entre elas e as significações, de tal
modo que a realidade, o pensamento e a linguagem são inseparáveis, suscitam uns
aos outros e interpretam-se uns aos outros.
A linguagem:
● refere-se ao mundo através das
significações e, por isso, podemos nos relacionar com a realidade através da
palavra;
● relaciona-se com sentidos já existentes e
cria sentidos novos e, por isso, podemos nos relacionar com o pensamento
através das palavras;
● exprime e descobre significados e, por
isso, podemos nos comunicar e nos relacionar com os outros;
● tem o poder de suscitar significações, de
evocar recordações, de imaginar o novo ou o inexistente e, por isso, a
literatura é possível.
A linguagem revela nosso corpo como
expressivo e significativo, os corpos dos outros como expressivos e
significativos, as coisas como expressivas e significativas, o mundo como
dotado de sentido e o pensamento como trabalho de descoberta do sentido. As
palavras têm sentido e criam sentido.
Como escreve Merleau-Ponty:
A palavra, longe de ser um simples signo dos
objetos e das significações, habita as coisas e veicula significações. Naquele
que fala, a palavra não traduz um pensamento já feito, mas o realiza. E aquele
que escuta recebe, pela palavra, o próprio pensamento.
A linguagem não traduz imagens verbais
de origem motora e sensorial, nem representa idéias feitas por um
pensamento silencioso, mas encarna as significações.
Linguagem
simbólica e linguagem conceitual
A diferença entre linguagem simbólica e
linguagem conceitual é o que deve interessar-nos agora. Fundamentalmente, a
linguagem simbólica opera por analogias (semelhanças entre palavras e sons,
entre palavras e coisas) e por metáforas (emprego de uma palavra ou de um conjunto
de palavras para substituir outras e criar um sentido poético para a
expressão).
A linguagem simbólica realiza-se
principalmente como imaginação. A linguagem conceitual procura evitar a
analogia e a metáfora, esforçando-se para dar às palavras um sentido direto e
não figurado ou figurativo. Isso não quer dizer que a linguagem conceitual seja
puramente denotativa. Pelo contrário, nela a conotação é essencial, mas não
possui uma natureza imaginativa ou imagética.
A linguagem simbólica (dos mitos, da religião,
da poesia, do romance, do teatro) e a linguagem conceitual (das ciências, da
filosofia) diferem sob os seguintes aspectos:
● a linguagem simbólica é fortemente emotiva
e afetiva, enquanto a linguagem conceitual procura falar das emoções e dos
afetos sem se confundir com eles e sem se realizar por meio deles;
● a linguagem simbólica oferece sínteses
imediatas (imagens), enquanto a linguagem conceitual procede por desconstrução
analítica e reconstrução sintética dos objetos, fazendo com que acompanhemos cada
passo da análise e da síntese;
● a linguagem simbólica nos oferece palavras
polissêmicas, isto é, carregadas de múltiplos sentidos simultâneos e
diferentes, tanto sentidos semelhantes e em harmonia, quanto sentidos opostos e
contrários; a linguagem conceitual procura diminuir ao máximo a polissemia e a
conotação, buscando fazer com que cada palavra tenha um sentido próprio e que
seus diferentes sentidos dependam do contexto no qual é empregada;
● a linguagem simbólica leva-nos para dentro
dela, arrasta-nos para seu interior pela força de seu sentido, de suas
evocações, de sua beleza, de seu apelo emotivo e afetivo; a linguagem
conceitual busca convencer-nos e persuadir-nos por meio de argumentos,
raciocínios e provas. A linguagem simbólica fascina e seduz; a linguagem
conceitual exige o trabalho lento do pensamento;
● a linguagem simbólica nos dá a conhecer o
mundo criando um outro, análogo ao nosso, porém mais belo ou mais terrível do
que o nosso, mais justo ou mais violento do que o nosso, mais antigo ou mais
novo do que o nosso, mais visível ou mais oculto do que o nosso; a linguagem
conceitual busca dizer o nosso mundo, decifrando seu sentido, ultrapassando
suas aparências e seus acidentes;
● a linguagem simbólica, privilegiando a
memória e a imaginação, nos diz como as coisas ou os homens poderiam ter sido
ou poderão ser, voltando-se para um possível passado ou para um possível
futuro; a linguagem conceitual busca dizer o nosso presente, fala do
necessário, determinando suas causas ou motivos e razões; procura também as
linhas de força de suas transformações e o campo dos possíveis, como
possibilidade objetiva e não apenas desejada ou sonhada.
RESUMINDO…
A linguagem em sentido amplo (isto é,
englobando língua, fala e palavra) é constituída por quatro fatores
fundamentais:
1. fatores físicos (anatômicos, neurológicos,
sensoriais), que determinam para nós a possibilidade de falar, escutar,
escrever e ler;
2. fatores socioculturais, que determinam a
diferença entre as línguas e entre as línguas dos indivíduos. Assim, o
português e o inglês correspondem a sociedades e culturas diferentes, bem como
a linguagem de Machado de Assis e de Guimarães Rosa correspondem a momentos
diferentes da cultura no Brasil;
3. fatores psicológicos (emocionais,
afetivos, perceptivos, imaginativos, lembranças, inteligência) que criam em nós
a necessidade e o desejo da informação e da comunicação, bem como criam nossa
capacidade para a performance lingüística, seja ela cotidiana, artística,
científica ou filosófica;
4. fatores lingüísticos propriamente ditos,
isto é, a estrutura e o funcionamento da linguagem que determinam nossa
competência e nossa performance enquanto seres capazes de criar e compreender
significações.
Esses fatores nos dizem por que existe
linguagem e como ela funciona, mas não nos dizem o que é a linguagem. É
a perspectiva fenomenológica que nos orienta para sabermos não só o que é a
linguagem, mas também qual é seu papel fundamental no conhecimento:
● a linguagem não é mecanismo psicomotor (os
fatores 1 e 3 apresentam as condições biológicas e psicológicas para haver
linguagem, mas não qual é a natureza da experiência da palavra);
● a linguagem não é simples relação binária
entre signo e coisa, signo e idéia, mas é uma relação ternária, na qual os
signos são símbolos que veiculam significações;
● a linguagem não traduz pensamentos, mas
participa ativamente da formação e formulação das idéias e dos valores;
● a linguagem é uma forma de nossa
experiência total de seres que vivem no mundo e com outros; é uma dimensão de
nossa existência;
● a linguagem, como a percepção e a imaginação,
pode comprazer-se no já dado, já dito e já pensado, no instituído e
estabelecido, ficando escrava dos preconceitos e das ideologias, pois, como
disse Platão, ela pode ser remédio, veneno e máscara. Pode bloquear nosso
conhecimento e pode produzir desconhecimento (mentira, desinformação). É,
assim, nosso meio de acesso ao mundo, aos outros e à verdade, mas também o
instrumento do engano, do falso e da mentira;
● a linguagem cria, interpreta e decifra
significações, podendo fazê-lo miticamente ou logicamente, magicamente ou
racionalmente, simbolicamente ou conceitualmente
Comentários
Postar um comentário