A memória Lembrança e identidade do Eu

Convite à Filosofia
De Marilena Chaui
Ed. Ática, São Paulo, 2000.
Unidade 4
O conhecimento
Capítulo 3
A memória
Lembrança e identidade do Eu
Todos conhecem os belos versos do poeta [Casimiro de Abreu, em “Meus oito anos”]:
Oh! que saudades que tenho
Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida,
Que os anos não trazem mais!
Que amor, que sonhos, que flores,
Naquelas tardes fagueiras
À sombra das bananeiras,
Debaixo dos laranjais!
Ou estes outros [Casimiro de Abreu, em “Deus e o mar”]:
Eu me lembro,
Eu me lembro!
Era pequeno e brincava na praia.
O mar bramia
E erguendo o dorso altivo sacudia
A branca espuma para o céu sereno.
A memória é uma evocação do passado. É a capacidade humana para reter e guardar o tempo que se foi, salvando-o da perda total. A lembrança conserva aquilo que se foi e não retornará jamais. É nossa primeira e mais fundamental experiência do tempo e uma das obras mais significativas da literatura universal contemporânea é dedicada a ela: Em busca do tempo perdido, do escritor francês Marcel Proust.
Para Proust, como para alguns filósofos, a memória é a garantia de nossa própria identidade, o podermos dizer “eu” reunindo tudo o que fomos e fizemos a tudo que somos e fazemos. Em sua obra Confissões, santo Agostinho escreve:
Chego aos campos e vastos palácios da memória, onde estão tesouros de inumeráveis imagens trazidas por percepções de toda espécie… Ali repousa tudo o que a ela foi entregue, que o esquecimento ainda não absorveu nem sepultou… Aí estão presentes o céu, a terra e o mar, com todos os pormenores que neles pude perceber pelos sentidos, exceto os que esqueci. É lá que me encontro a mim mesmo, e recordo das ações que fiz, o seu tempo, lugar, e até os sentimentos que me dominavam ao praticá-las. É lá que estão também todos os conhecimentos que recordo, aprendidos pela experiência própria ou pela crença no testemunho de outrem.
Como consciência da diferença temporal – passado, presente e futuro -, a memória é uma forma de percepção interna chamada introspecção, cujo objeto é interior ao sujeito do conhecimento: as coisas passadas lembradas, o próprio passado do sujeito e o passado relatado ou registrado por outros em narrativas orais e escritas.
Além dessa dimensão pessoal e introspectiva (interior) da memória, é preciso mencionar sua dimensão coletiva ou social, isto é, a memória objetiva gravada nos monumentos, documentos e relatos da História de uma sociedade.
Os antigos e a memória
Os antigos gregos consideravam a memória uma identidade sobrenatural ou divina: era a deusa Mnemosyne, mãe das Musas, que protegem as Artes e a História. A deusa Memória dava aos poetas e adivinhos o poder de voltar ao passado e de lembrá-lo para a coletividade. Tinha poder de conferir imortalidade aos mortais, pois quando o artista ou o historiador registram em suas obras a fisionomia, os gestos, os atos, os feitos e as palavras de um humano, este nunca será esquecido e, por isso, tornando-se memorável, não morrerá jamais.
Os historiadores antigos colocavam suas obras sob a proteção das Musas, escreviam para que não fossem perdidos os feitos memoráveis dos humanos e para que servissem de exemplo às gerações futuras. Dizia Cícero: “A História é mestra da vida”.
A memória é, pois, inseparável do sentimento do tempo ou da percepção/experiência do tempo como algo que escoa ou passa.
A importância da memória não se limitava à poesia e à História, mas também aparecia com muita força e clareza na medicina dos antigos. Um aforismo, atribuído a Hipócrates, o pai da medicina, dizia:
A vida é breve, a arte é longa, a ocasião escapa, o empirismo é perigoso e o raciocínio é difícil. É preciso não só fazer o que convém, mas também ser ajudado pelo paciente.
Qual a ajuda trazida pelo paciente para a arte médica? Sua memória. O médico antigo praticava com o paciente a anamnese, isto é, a reminiscência. Por meio de perguntas, o médico fazia o paciente lembrar-se de todas as circunstâncias que antecederam o momento em que ficara doente e as circunstâncias em que adoecera, pois essas lembranças auxiliavam o médico a fazer o diagnóstico e a receitar remédios, cirurgias e dietas que correspondiam à necessidade específica da cura do paciente.
Além de imortalizar os mortais e de auxiliar a arte médica, para os antigos a memória ainda possuía outra função.
Os antigos, sobretudo os romanos, desenvolveram uma arte chamada eloqüência ou retórica, destinada a persuadir e a criar emoções nos ouvintes, através do uso belo e eficaz da linguagem. No aprendizado dessa arte, consideravam a memória indispensável, não só porque o bom orador (poeta, político, advogado) era aquele que falava ou pronunciava longos discursos sem ler e sem se apoiar em anotações, como também porque o bom orador era aquele que aprendia de cor as regras fundamentais da eloqüência ou oratória.
Assim, a memória era considerada essencial para o aprendizado e os mestres de retórica criaram métodos de memorização ou “memória artificial”, que constituíam a “Arte da Memória”. Esta era parte central do ensino e do aprendizado de oratória, tornando-se, depois, uma arte usada por outras disciplinas de ensino e aprendizagem. Os romanos julgavam, portanto, que além da memória natural, os seres humanos são capazes de desenvolver uma outra memória - que amplia e auxilia a memória espontânea - e justificavam a “Arte da Memória” narrando uma lenda sobre o criador da retórica, o poeta grego Simônides de Céos.
Conta a lenda que Simônides foi convidado pelo rei de Céos a fazer um poema em sua homenagem. O poeta dividiu o poema em duas partes: na primeira, louvava o rei e, na segunda, os deuses Castor e Polux. O rei ofereceu um banquete no qual Simônides leu o poema e pediu o pagamento. Como resposta, o rei lhe disse que, como o poema também estava dedicado aos deuses, ele pagaria metade e que Simônides fosse pedir a outra metade a Castor e Polux.
Pouco depois, um mensageiro aproximou-se de Simônides dizendo-lhe que dois jovens o procuravam do lado de fora do palácio. Simônides saiu para encontrá-los, mas não encontrou ninguém. Enquanto estava no jardim, o palácio desabou e todos morreram. Castor e Polux, os dois jovens que fizeram Simônides sair do palácio, salvando o poeta, pagaram o poema. As famílias dos demais convidados desesperaram-se porque não conseguiam reconhecer seus mortos. Simônides, porém, lembrava dos lugares e das roupas de cada um e pôde ajudar na identificação dos mortos.
A lembrança do palácio e dos lugares dos convidados levou à criação da “Arte da Memória” como um palácio com lugares nos quais colocamos imagens e palavras e, passeando por ele, ordenadamente, recordamos as coisas, as pessoas, os fatos e as palavras necessárias para escrever e dizer discursos, poesias, peças teatrais. É por isso que todo o texto de santo Agostinho, que citamos, se refere aos “palácios da memória”.
A idéia de memória artificial existe até hoje, quando nos referimos aos computadores e falamos de sua “memória”. A diferença entre a memória artificial dos antigos e a atual consiste no fato de que a deles era desenvolvida como uma capacidade do sujeito do conhecimento humano, enquanto a atual deposita a memória nas máquinas e quase nos despoja da necessidade de termos memória.
Em nossa sociedade, a memória é valorizada e desvalorizada. É valorizada com a multiplicação dos meios de registro e gravação dos fatos, acontecimentos e pessoas (computadores, filmes, vídeos, fitas cassetes, livros) e das instituições que os preservam (bibliotecas, museus, arquivos). É desvalorizada porque não é considerada uma atividade essencial para o conhecimento – podemos usar máquinas no lugar de nossa própria memória – e porque a publicidade e a propaganda nos fazem preferir o “novo”, o “moderno”, a “última moda”, pois a indústria e o comércio só terão lucros se não conservarmos as coisas e quisermos sempre o “novo”. A desvalorização da memória também aparece na proliferação de objetos descartáveis, na maneira como a indústria da construção civil destrói cidades inteiras para torná-las “modernas”, destruindo a memória e a História dessas cidades. A desvalorização da memória aparece, por fim, no descaso pelos idosos, considerados inúteis e inservíveis em nossa sociedade, ao contrário de outras em que os idosos são portadores de todo o saber da coletividade, respeitados e admirados por todos.
O que é a memória
A memória é uma atualização do passado ou a presentificação do passado e é também registro do presente para que permaneça como lembrança. Alguns estudiosos julgaram que a memória seria um fato puramente biológico, isto é, um modo de funcionamento das células do cérebro que registram e gravam percepções e idéias, gestos e palavras. Para esses estudiosos, a memória se reduziria, portanto, ao registro cerebral ou à gravação automática pelo cérebro de fatos, acontecimentos, coisas, pessoas e relatos.
Essa teoria, porém, não se sustenta. Em primeiro lugar, porque, se a memória fosse mero registro cerebral de fatos e coisas passados, não se poderia explicar o fenômeno da lembrança, isto é, que selecionamos e escolhemos o que lembramos e que a lembrança tem, como a percepção, aspectos afetivos, sentimentais, valorativos (há lembranças alegres e tristes, há saudade, há arrependimento e remorso). Em segundo lugar, também não se poderia explicar o esquecimento, pois se tudo está espontânea e automaticamente registrado e gravado em nosso cérebro, não poderíamos esquecer coisa alguma, nem poderíamos ter dificuldade para lembrar certas coisas e facilidade para recordar outras tantas.
Isso não significa que não haja um componente biológico, fisiológico ou cerebral na memória, pois os estudos científicos mostram não só as zonas do cérebro responsáveis pela memória, como também os estudos bioquímicos mostram o papel de algumas substâncias químicas na produção e conservação da memória. O que estamos dizendo é que os aspectos biológicos e químicos da memória não explicam o fenômeno no seu todo, isto é, como forma de conhecimento e de componente afetivo de nossas vidas.
Podemos dizer que, em nosso processo de memorização, entram componentes objetivos e componentes subjetivos para formar as lembranças.
São componentes objetivos: as atividades físico-fisiológicas e químicas de gravação e registro cerebral das lembranças, bem como a estrutura do objeto que será lembrado. Assim, por exemplo, a psicologia da Gestalt mostra que temos maior facilidade para memorizar uma melodia do que sons isolados ou dispersos; que memorizamos mais facilmente figuras regulares (círculo, quadrado, triângulo, etc.) do que um conjunto disperso de linhas.
São componentes subjetivos: a importância do fato e da coisa para nós; o significado emocional ou afetivo do fato ou da coisa para nós; o modo como alguma coisa nos impressionou e ficou gravada em nós; a necessidade para nossa vida prática ou para o desenvolvimento de nossos conhecimentos; o prazer ou dor que um fato ou alguma coisa produziram em nós, etc. Em outras palavras, mesmo que nosso cérebro grave e registre tudo, não é isso a memória e sim o que foi gravado com um sentido ou com um significado para nós e para os outros.
Os filósofos e a memória
O filósofo francês Bergson distingue dois tipos de memória:
1. a memória-hábito; e
2. a memória pura ou memória propriamente dita.
A memória-hábito é um automatismo psíquico que adquirimos pela repetição contínua de alguma coisa, como, por exemplo, quando aprendemos alguma coisa de cor. A memória é uma simples fixação mental conseguida à força de repetir a mesma coisa. Aqui, basta iniciar um gesto ou pronunciar uma palavra, para que tudo seja lembrado automaticamente: recito uma lição, repito movimentos de dança, freio o carro ao sinal vermelho, piso na embreagem para mudar a marcha do carro, risco uma palavra errada que escrevi, giro a chave para a direita ou para a esquerda para abrir uma porta, etc. Todos esses gestos e essas palavras são realizados por nós quase sem pensarmos neles ou até mesmo sem pensarmos neles. O automatismo psíquico se torna um automatismo corporal.
A memória pura ou a memória propriamente dita é aquela que não precisa da repetição para conservar uma lembrança. Pelo contrário, é aquela que guarda alguma coisa, fato ou palavra únicos, irrepetíveis e mantidos por nós por seu significado especial afetivo, valorativo ou de conhecimento.
É por isso que guardamos na memória aquilo que possui maior significação ou maior impacto em nossas vidas, mesmo que seja um momento fugaz, curtíssimo e que jamais se repetiu ou se repetirá. É por isso também que, muitas vezes, não guardamos na memória um fato inteiro ou uma coisa inteira, mas um pequeno detalhe que, quando lembrado, nos traz de volta o todo acontecido. A memória pura é um fluxo temporal interior.
Podemos, então, distinguir duas formas principais de memorização: aquela que se dá por repetição e por atenção deliberada para fixar alguma coisa; e aquela que se dá espontaneamente pela força ou pelo impacto de alguma coisa ou de algum acontecimento dotados de significado importante em nossa existência. Aqui, o interesse por alguma coisa ou algum fato é mais decisivo do que a atenção voluntária que lhe damos.
Existem seis grandes tipos de memória:
1. a memória perceptiva ou reconhecimento, que nos permite reconhecer coisas, pessoas, lugares, etc. e que é indispensável para nossa vida cotidiana;
2. a memória-hábito, que adquirimos por atenção deliberada ou voluntária e pela repetição de gestos ou palavras, até gravá-los e poderem ser repetidos sem que neles tenhamos que pensar;
3. a memória-fluxo-de-duração-pessoal, que nos faz guardar a lembrança de coisas, fatos, pessoas, lugares cujo significado é importante para nós, seja do ponto de vista afetivo, seja do ponto de vista de nossos conhecimentos;
4. a memória social ou histórica, que é fixada por uma sociedade através de mitos fundadores e de relatos, registros, documentos, monumentos, datas e nomes de pessoas, fatos e lugares que possuem significado para a vida coletiva. Excetuando-se os mitos, que são fabulações, essa memória é objetiva, pois existe em objetos (textos, monumentos, instrumentos, ornamentos, etc.) e fora de nós;
5. a memória biológica da espécie, gravada no código genético das diferentes espécies de vida e que permitem a repetição da espécie;
6. a memória artificial das máquinas, baseada na estrutura simplificada do cérebro humano.
As quatro primeiras fazem parte da vida de nossa consciência individual e coletiva; a quinta é inconsciente e puramente física; a última é uma técnica.
Memória e teoria do conhecimento
Do ponto de vista da teoria do conhecimento, a memória possui as seguintes funções:
● retenção de um dado da percepção, da experiência ou de um conhecimento adquirido;
● reconhecimento e produção do dado percebido, experimentado ou conhecido numa imagem, que, ao ser lembrada, permite estabelecer uma relação ou um nexo entre o já conhecido e novos conhecimentos;
● recordação ou reminiscência de alguma coisa como pertencente ao tempo passado e, enquanto tal, diferente ou semelhante a alguma coisa presente;
● capacidade para evocar o passado a partir do tempo presente ou de lembrar o que já não é, através do que é atualmente.
Por essas funções, a memória é considerada essencial para a elaboração da experiência e do conhecimento científico, filosófico e técnico. Por esse motivo, Aristóteles escreveu, na Metafísica:
É da memória que os homens derivam a experiência, pois as recordações repetidas da mesma coisa produzem o efeito duma única experiência.
A memória é retenção. Graças à lembrança e à prospecção, o conhecimento filosófico, técnico e científico podem elaborar a experiência e alcançar novos saberes e práticas.
Graças à memória, somos capazes de lembrar e recordar. As lembranças podem ser trazidas ao presente tanto espontaneamente, quanto por um trabalho deliberado de nossa consciência. Lembramos espontaneamente quando, por exemplo, diante de uma situação presente nos vem à lembrança alguma situação passada. Recordamos quando fazemos o esforço para lembrar.
Assim como há perturbações e problemas perceptivos (cegueira, surdez, perda de tato) e imaginativos (loucura, ideologia), também existem problemas e perturbações da memória, indo desde uma dificuldade momentânea para recordar alguma coisa, até a amnésia, perda total ou parcial da memória.
Quando perdemos a capacidade para lembrar palavras ou construir frases, sofremos a afasia. Quando perdemos a capacidade para lembrar e realizar gestos e ações, sofremos de apraxia. Essas perturbações podem ser causadas por lesões físicas (no cérebro ou no sistema nervoso) ou traumas psicológicos, isto é, por situações de grande sofrimento psíquico que nos forçam a esquecer alguma coisa, algum fato, alguma situação.
Seja por lesão física, seja por sofrimento psíquico, seja por uma perturbação momentânea e passageira, o esquecimento é a perda de nossa relação com o passado e, portanto, com uma dimensão do tempo e com uma dimensão de nossa vida. Na amnésia, perdemos relação com o todo de nossa existência. Na afasia perdemos a relação com os outros através da linguagem ou da comunicação. Na apraxia, perdemos a relação com o nosso corpo e com o mundo das coisas. Esquecer é ficar privado de memória e perder alguma coisa. Algumas vezes, porém, essa perda é um bem: esquecer alguma coisa terrível é ultrapassá-la para poder viver bem novamente.

A memória não é um simples lembrar ou recordar, mas revela uma das formas fundamentais de nossa existência, que é a relação com o tempo, e, no tempo, com aquilo que está invisível, ausente e distante, isto é, o passado. A memória é o que confere sentido ao passado como diferente do presente (mas fazendo ou podendo fazer parte dele) e do futuro (mas podendo permitir esperá-lo e compreendê-lo).

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